Precioso Ensinamento do Treino da Mente - III
Ensinamentos em Barcelona, dia 7-10-2004. (Parte 3 de 3)
Por Jigme Khyentse Rinpoche
Estamos aqui a receber ensinamentos sobre “As 8 estrofes para o treino da mente”. Tenho a certeza de que podemos ouvir muito sobre este treino da mente nas zonas onde se ensina o budismo Mahayana. Se assim não for, é muito estranho. O que quero dizer é que no passado praticou-se de uma forma muito secreta. E vós sabeis porque é secreto? É secreto porque normalmente é muito difícil que a gente tenha o suficiente mérito para escutar estes ensinamentos. É difícil devido aos pontos de referência aos quais estamos acostumados. Imaginai o difícil que é, o quanto nos custa compreender, que os outros são importantes e que as nossas coisas não são tão importantes. Inclusive se contarmos isto a alguém, é muito difícil que esta pessoa capte a ideia. O mero facto de podermos escutar estes ensinamentos, e não falo aqui de os aplicardes, só de os puderdes escutar, e não pensardes que são malignos ou estranhos, já demonstra que tendes muito mérito acumulado. O simples facto de escutar estes ensinamentos e apreciá-los, isto em si mesmo já é uma prática, já é o início do treino da mente. Não é secreto porque é algo de mau que há que esconder, ou porque não o querem partilhar por falta de amabilidade. É secreto porque as pessoas simplesmente não o podiam acolher.
Assim alguns de vós podem perguntar-se o que quero dizer com mérito. O mérito é a habilidade de apreciar algo que é positivo. O mérito é a capacidade de transformar algo negativo em algo positivo. Inclusivamente algo realmente difícil. Tomar-se esta situação de forma muito positiva é devido ao mérito. E deste mérito vem a raiz do treino da mente. Deste ponto de vista o mérito é a habilidade, a capacidade. Então o que vos quero recordar é que o que se trata aqui é de mudar o ponto de referência usual que temos, o de pensar que nós somos o mais importante e que as pessoas nos devem algo. Esta crença baseia-se em nos considerarmos mais importantes. E com isto tentamos ser felizes. E devemos tentar encontrar algumas razões para pensar que nós não somos os mais importantes. Vamos imaginar que é verdade, que nós somos os mais importantes. Mesmo que o fossemos e nos comportássemos dessa maneira, que conseguiríamos com isto? Não muito. Porque não podemos convencer todo o mundo. É como dissemos ontem. Se hoje me vou encontrar com 100 pessoas, não posso convencê-las a todas de que eu sou mais importante do que elas. Assim e em consequência, surge a raiz da ideia de como é difícil pensar em nós como os mais importantes. Imaginai, é mais fácil convencer 100 pessoas ou uma só, nós mesmos, de que não somos os mais importantes? E quando tentamos convencer os outros de que nós somos os mais importantes, então é tentar convencê-los de que eles não são os mais importantes. E a 100 pessoas como eu, vai ser tão difícil convencê-los disto. É por isso que pensar que somos mais importantes é como um sonho bonito, mas não é prático. Convencer os milhões de pessoas que há neste mundo de que eu sou mais importante do que todos eles, isto é impossível. Assim é melhor não tentarmos. Convencer-me a mim mesmo de que sou menos importante que todos os outros, em vez de tentar convencer todos os outros de que eles são menos importantes, isso é algo que se pode compreender facilmente. Agora, se eu posso convencer-me a mim mesmo de que sou o menos importante, e que todos vós sois mais importantes que eu. Então, que acontece? Vós estareis todos mais contentes. É mais fácil convencer-vos de que vós sois mais importantes que eu, do que convencer-vos de que eu sou mais importante que vós.
Assim, como podeis ver, o treino da mente não é algo impossível. O contrário a ele, o que pensamos normalmente, isso é algo impossível. Mas para poder compreender isto necessitamos de méritos. Então, podemos perguntar-nos, o que é que podemos fazer? “Dá-me um mantra para que o possa recitar. Dá-me algo que possa fazer. Que possa sentir que estou fazendo algo”. Mas não tem nada que ver com isto. A primeira coisa de que temos que dar-nos conta é que tomar os outros como mais importantes que nós, é algo lógico, prático, fácil e possível de fazer. E pensar que podemos conseguir algo, a felicidade, pensando que nós somos mais importantes que os outros é uma loucura. É uma loucura maior que querer ir à lua num táxi. Hoje em dia nós podemos ir à lua. Há uma companhia de aviões que tem um avião que pode ir à lua, vi-o na televisão espanhola. Não sei muito bem o que estavam a dizer, mas esta foi a conclusão a que cheguei. Se alguém paga muito dinheiro poder conseguir chegar à Lua, ao espaço. Ir ao espaço é mais fácil que convencer outra pessoa que nós somos mais importantes do que ela. O primeiro verso que lemos dizia que tínhamos que considerar os outros como mais importantes. E para poder fazer isto temos que pensar que nós somos menos importantes e considerar os outros, desde o fundo do nosso coração, como alguém muito querido. Para poder fazer isto, temos que observar a nossa mente para que não se implique em emoções que tragam dano aos outros que nos são tão queridos, e tão-pouco a nós mesmos.
IV Quando encontrar um ser malévolo
Esmagado sob os males que inflige e sofre,
Possa eu aprecia-lo como se tivesse achado
Um precioso tesouro tão difícil de encontrar!
Que quer dizer este verso? Pois diz que quando nos encontrarmos com alguém que nos produz aversão ou medo, então temos que pensar que esta pessoa é alguém muito precioso. Aqui referimo-nos a alguém que pela sua aparência física, ou maneira como fala nos produz rejeição. Ou também pela maneira como nós pensamos que ele pensa, ou qualquer coisa que nos pode ocorrer e que cria em nós esta aversão. Devemos ter a determinação de superá-la e de apreciar este ser. Então, como podemos apreciá-lo? Primeiro não temos que desviar o olhar, seja fisicamente afastando os nossos olhos, ou interiormente fechar-nos. Temos que abrir-nos, não fechar-nos. E quando fazemos isto, não é agradável. Se isto fosse fácil, então todos os seres o estariam a fazer. Todos seriam Budas. É por isto que é difícil. É por isto que é uma coisa tão estranha. Em certo sentido diria que é importante libertar-nos do mal-entendido da prática do Dharma nos fazer felizes. Porque quando fazemos este tipo de treino nos damos conta que não é fácil. Assim podemos pensar, “que estou a fazer? ”. Sigo esta coisa, estou a estudar esta coisa para ser feliz e tudo o que me manda fazer são coisas difíceis. A questão aqui é que, quando pensamos em felicidade, pensamos em algo que consiste em desapegar-mo-nos das emoções que nos surgem. Por exemplo, alguém que é um fumador empedernido, se dissermos a esta pessoa que se deixar de fumar vai ser feliz… quando deixar de fumar não se vai sentir feliz. Quando praticamos o Dharma não deveríamos pensar na felicidade que nos traz o Dharma, tal como alguém que está sob a influência de um produto, por exemplo alguém que está a fumar. Todos podemos dizer que somos viciados nalgum tipo de produto, como o tabaco ou outro tipo. Mas somos todos e da mesma maneira levados a seguir as nossas emoções. Então, o treino da mente trata de reduzir estas dependências.
Assim quando começamos o treino da mente devemos perceber que vamos ter sintomas de abstinência. Assim quando começamos com a prática do treino da mente e surgem dificuldades, isto são simplesmente os sintomas de abstinência, não é assim tão grave. Às vezes, havendo-o praticado durante algum tempo, podemos pensar: “isto não funciona. Ainda não mudei. Estava melhor como fazia anteriormente” e voltamos aos velhos hábitos. E isto não é diferente de alguém que tenta deixar de beber ou fumar. Tenho a certeza que as pessoas que fumam e querem deixar dizem: “a partir de amanhã vou deixar de fumar.” É o mesmo que ocorre quando estamos a praticar. Quando praticamos não temos que acolher a prática para substituir, para tentar substituir, o nosso vício anterior. Deste ponto de vista, há que considerar que não podemos esperar essa felicidade com a nossa prática.
A dependência mais difícil de superar é a de pensar que “eu sou o mais importante”.
Às vezes tentamos mudar este pensamento, então começamos a pensar que somos o pior de todos, no sentido que nos aniquilamos a nós mesmos. Temos essa forma de o interpretar, pensando que somos os piores, mas isso não funciona.
Quando dizemos “nós não somos importantes, são mais importantes os outros”, então estamos dizendo-o, estamos talvez pensando-o, mas realmente nas entranhas não o sentimos. O que temos que fazer aqui é permitir que este pensamento, “eu sou menos importante”, afecte os pontos de referência e pouco a pouco penetre em nós, nas nossas emoções. E para este processo necessita-se paciência. A impaciência é um sinal de que ainda temos este pensamento de que “eu sou o mais importante”. Aqui a paciência que necessitamos é aquele tipo de paciência que sentimos: “ainda que me custe cem anos de trabalho, só para sentir-me 5 minutos menos importante que os outros, vou fazê-lo.”. Um aspecto disto é o facto de que diminui o exigente que somos. Isso é treino da mente. Claro que é importante também o facto de que podemos fazer o treino da mente numa sessão formal que temos estabelecido para nós. Mas isto é simplesmente a preparação, o facto real é quando estamos com os outros. E, por esta razão, Atisha levou, quando foi ao Tibete, um homem da Índia que não era seu assistente. A sua única função, com o seu carácter muito irritante, não era ajudar os outros senão a Atisha a treinar a sua mente. E por isto diz-se aqui, no treino da mente, que quando nos encontramos com outra pessoa temos que pensar nela como algo precioso difícil de encontrar. E realmente apreciá-la como um precioso tesouro.
V Vítima do ciúme e da inveja,
Alvo de injúria e de desprezo,
Que a derrota me aconteça:
Ofereço a vitória aos outros!
Este verso é simplesmente a extensão dos versos anteriores logo recordam-nos da importância dos outros seres. Realmente compreender o que é isto a que chamamos “os outros”. Quando dizemos “os outros”, que sentimento surge em nós? Agora não tendes que pensar nos outros como se estivésseis numa ilha deserta, não. Pensai, agora mesmo, que sinto quando digo “os outros”. Na minha própria mente, ao menos, não dou um salto de alegria. Pelo menos, na minha própria mente, não dou um salto de alegria. Tento o melhor que posso para dar um salto de alegria, mas não consigo. No melhor dos casos, os outros são como uma espécie de peões de xadrez. E creio que me ocorre isto porque não passei tempo suficiente pensando nos outros. Por exemplo, pensamos: “esta noite estiveram algumas pessoas nesta sala.”. A maioria de vós só vê a nuca das costas das pessoas que têm à frente. Agora mesmo, olhai uma só pessoa, vede as costas diante de vós como um amigo. Esta pessoa, além das costas tem nariz, boca, olhos, alguns têm óculos, outros enfeitaram-se esta manhã e levam o que se chama a “barba das 5 da tarde”. E não só esta, se pensais: “todas as pessoas que estão aqui alguma vez foram uma criança. Quando eram crianças estavam desprotegidos. Crianças que não se podiam valer a si mesmas, que gritavam e não deixavam dormir os seus pais. Que fizeram os seus pais passarem durante muitos meses, quando não anos, muitas noites sem dormir. O que está claro é que todos temos contribuído muito para que os nossos pais tenham rugas e cabelo branco. E do que não há dúvida, é que alguns de vós estão passando o mesmo que passaram os vossos pais.
Então, quando dizemos “os outros”, este “outro” que está diante de nós tem uma cara, tem sentimentos, vai para casa, tem um trabalho… porque não queremos as outras pessoas como uma responsabilidade nossa? Porque não o queremos? Por medo. Quando falamos dos outros trata-se de seres sensíveis como nós. Da mesma maneira que nós queremos ser felizes eles também o querem ser. E tenho a certeza que da mesma maneira que eu não quero sofrer, os outros seres tão-pouco querem sofrer. Mas este tipo de pensamento não é muito prático. Imaginai que estais no trabalho prestes para ir para casa e alguém telefona e vos pede ajuda, vais dizer-lhe: “sinto muito, terminou o meu horário do escritório”? Porque o dissemos? Por medo. Pelo medo de ter de aceitar outra pessoa. Pensamos que não podemos dizer “sim”, porque se o fazemos logo virá outro, e outro e outro… e logo não poderei ir dormir. E isso é do que trata o ensinamento da mente.
Depende do quão longe queiramos ir. O treino da mente trata de desenvolver um estado de ausência de medo. O libertar-nos do medo de estar ameaçados, este é o treino da mente. De facto quando dizemos a alguém: “não quero, o escritório está fechado.”. Ali, na resposta, está implicado o medo. O treino da mente trata de dispersar este medo. Não se trata de fazer “horas extras”, só trata de eliminar este medo. Eliminar o medo, esteja ele onde estiver. Hoje em dia, quando há uma guerra, escondem-se nas igrejas ou nas mesquitas, entendeis o que quero dizer? Os terroristas, hoje em dia, refugiam-se dentro das igrejas ou mesquitas, para que os outros não disparem. Da mesma maneira, nós também nos escondemos dentro das igrejas do nosso próprio medo. Fazemos isto quando dizemos: “o escritório já está fechado”. Tratamo-lo como se fosse algo sagrado. Assim o treino da mente não implica, de todo, que façamos “horas extras”, trata antes da erradicação do medo. A nossa mente vai fazer com que isto soe como se estivéssemos a atacar alguém. Quando a polícia chega e quer tirar os terroristas da igreja, onde se refugiaram, estes vão dizer que os polícias estão a atacar um lugar sagrado. E isso é o que vai dizer o nosso medo. Assim podemos estar muito seguros de que quando estamos a aplicar o treino da mente, não se trata de nos convertermos em escravos, simplesmente trata-se de erradicar o nosso medo. Aqui diz: “quando outros, devido à inveja me maltratam, acusando-me e depreciando-me…”. O que isto quer dizer é que, quando vêm ao nosso escritório não só querem que os atendamos fora de hora quando ainda por cima nos maltratam e nos insultam, diz-nos também que aceitemos a derrota e lhes dêmos a vitória. O que quer dizer aqui é que não sucumbamos ao medo. E deste ponto de vista, o não responder ou reagir, não quer dizer que nos deixemos maltratar ou que os outros abusem de nós. Mas para poder fazer isto realmente necessitamos duma grande maturidade dentro do treino da mente. Necessitamos dum certo grau de compreensão do treino da mente, porque senão podemos pensar que fazer este tipo de coisas não está feito para nós. E podemos pensar que se fizermos esse tipo de coisas vamos ficar piores, vamos ser piores. Pensar assim, é não ter maturidade suficiente no treino da mente. E é por isto no princípio a compreensão é algo tão importante. No treino da mente, para conseguir esta maturidade, não é suficiente escutá-lo uma vez, há que escutá-lo, contemplá-lo, estudá-lo, logo surgirão muitas dúvidas, e essas dúvidas há que dispersá-las e eliminá-las com o debate, seja consigo mesmo ou com os outros.
Com isto tudo não quero dizer que é necessário que vos surjam dúvidas. Se não surgem dúvidas, óptimo, mas se elas surgirem não é nada mau. As dúvidas estão aí para que trabalhemos com elas. Quando diz aqui: “… que aceite a derrota…”, aqui “derrota” refere-se ao que normalmente chamamos e tomamos como uma derrota. Mas na realidade não é nada uma derrota. Na realidade, é ser “não ferido”. Na realidade é não permitir ser maltratado. Não permitir que as palavras e as acções nos afectem. Aqui trata-se simplesmente de não ser tão fraco. Aqui trata-se de ter a força suficiente, confiança e valentia para tomar a derrota para nós. Ter a coragem de oferecer aos outros a vitória. E então, sob este ponto de vista, estas quatro linhas não soam tão mal. Quando só ouvimos estes versos: “quando outros, devido à inveja, me maltratam, acusando-me e depreciando-me, que aceite a derrota, e lhes ofereça (a eles) a vitória”, pode soar estranho, mas não é. De facto oferecem-nos algo mais doce, mais saboroso e do que a mera compreensão normal que deles podemos ter. Os Ensinamentos de Buda têm uma qualidade especial, quanto mais os praticamos e os aplicamos, mais poderosos se tornam. Estas linhas, ainda que as tenhamos lido vinte anos, se as voltamos a ler, encontramos sempre algo de novo.
VI Quando alguém, a quem ajudei,
Em quem depositei todas as minhas esperanças,
Sem motivo, Injustamente se volta contra mim:
Considerá-la-ei como o meu mestre sublime.
Aqui o verso dirige-se a algo mais profundo que os outros versos. Aqui quando, por exemplo, a pessoa que temos diante de nós, a tratamos como nosso próprio filho, ou nosso pai ou mãe, e logo esta pessoa nos trata mal, parece que temos direito de sentir-nos mal por isso. Alguém a quem quisemos muitíssimo, a quem dissemos ter como muitíssimo querido, alguém por quem temos muito apego. Por exemplo, quando pensamos no amor e na desilusão. Cremos mais no amor? Não sei se cremos mais no amor ou no apego. Mas quando a temos, sentimos essa coisa por alguém e então criamos muitas expectativas. E quando essa expectativa não se realiza, quando não somos correspondidos, então podemos sentir-nos devastados. Algumas pessoas podem inclusive perder a confiança na vida. Porque estas pessoas foram um ponto de referência para nós e agora maltratam-nos. Aqui diz: “Quando alguém, a quem tenha ajudado, em quem haja depositado grandes esperanças, me prejudique profundamente, sem motivo, possa eu considerá-la como o meu mestre sublime.” Mas como podemos fazer isto?
Enquanto usarmos o amor para disfarçar o nosso apego ou as nossas expectativas, ou o nosso aborrecimento, não há nenhuma possibilidade de que possamos obter a felicidade.
A quem queremos enganar, com esta concepção adulterada de “amor”? Esta é a lição que se pode aprender aqui. Por isso o verso diz: “… que possa considerá-la como meu mestre sublime.” Por exemplo, com as pessoas com quem temos tantas expectativas, se por elas não tivéssemos apego, se a única coisa que tivéssemos por elas fosse o amor incondicional, então não nos teríamos que sentir tão devastados. Em vez de nos sentirmos aborrecidos, ou devastados, ou perder a confiança na vida, sentiríamos antes compaixão. Sentiríamos tristeza por eles. Mas não nos sentiríamos devastados. E não nos sentiríamos feridos. Tão-pouco pensaríamos que não é justo. Se pensamos que podemos ser felizes com o apego, com o aborrecimento, a inveja e o orgulho, então estamos sob o efeito da ilusão e muito enganados. Então, que temos que fazer?
Expor-nos à compaixão, à nossa própria compaixão. Isto quer dizer que nos permitimos sentir compaixão. Que não tenhamos medo da compaixão. E como o fazemos? Teremos que aceitar que há outras pessoas, para além de nós, neste mundo. Que há gente. Que isto não é só uma ideia, uma crença. Gostaria de ser o único! Mas há tantas pessoas! Assim, quando tentamos aceitar os outros, no princípio é difícil, mas depois acostumamo-nos. É assim que nos acostumamos a esta sensação difícil de que há outros seres e isto é muito importante. Então, quando queremos fazer isto, temos que aceitar que essa pessoa não é feita de cartão como uma marioneta. Essa pessoa tem sentimentos, e faz coisas um pouco diferentes das que nós fazemos. E este é o seguinte passo que temos que aceitar. Temos que sentar-nos e pensar nisto. Contemplar o ensinamento até que estejamos preparados para realmente pô-lo em acção. E logo surge o desejo de realmente experimentá-lo, de pô-lo em prática. Imaginemos que tendes toda um piso de um bloco de edifícios para vós. Então, no princípio, com todo este piso a que vos tendes de acostumar, surge-vos a ideia que poderíeis alugar algum quarto. Então, no princípio, há que acostumar-se a este pensamento: “talvez poderíamos alugar um quarto.” Temos que dar-nos algum tempo para nos acostumarmos a esse pensamento. Temos que contemplá-lo. Imaginamos que há ali alguém a viver conosco. Meditamos nisso. Então, temos de imaginar que essa pessoa vem ao nosso piso com todas as suas coisas, e que tem o hábito de ir para a cama desfasado do nosso. E a maneira como se move é diferente. E quando se senta, não se senta suavemente, se desapruma. Há que imaginá-la. E quando nos tenhamos acostumado à ideia, então podemos pô-la em prática. Podemos imprimir o papelito “alugam-se quartos”. Quando pudermos fazer isto, libertamo-nos de bastante medo. E então quando vem a pessoa, ou inquilino, não nos sentimos ameaçados. Quando não nos sentimos ameaçados, sentimo-nos mais abertos. Podemos, de alguma maneira, ser amigos. Quando não nos sentimos ameaçados podemos gerar esse desejo em nós mesmos. De certa maneira, quando essa pessoa não está contente, não está feliz, então nós nos sentimos preocupados com ela. E este sentimento pode-se desenvolver até ao ponto de não podemos suportar o sofrimento do outro. E isto é o que chamamos compaixão.
VII Possa eu, directa e indirectamente,
Vos oferecer mães queridas, toda a paz e a felicidade,
E secretamente tomar sobre mim
Toda a vossa negatividade e todos os vossos sofrimentos.
E então surge em nós uma ausência de medo e um coragem tal, que podemos estar completamente abertos aos outros. E já não há medo de sentir compaixão. E então, neste momento, podemos tomar sobre nós o seu sofrimento. Talvez não podemos dá-la, mas temos essa disponibilidade de dar, de querer dar-lhes a nossa felicidade.
VIII Que em todo o momento a minha mente
Não se contamine com as oito preocupações mundanas,
E, quando reconhecermos que todas as coisas são ilusórias,
Livre de apego, libertará todos os seres dos seus laços.
Quando tentamos treinar a nossa mente, não o fazemos para chegar a ser ricos, ou por medo de não ser ricos, nem tão-pouco o fazemos para libertar-nos das coisas desagradáveis, nem tão pouco para conseguir elogios, nem tão pouco o fazemos por medo da crítica, nem para conseguir fama, tão-pouco pelo medo de não sermos apreciados, nem para que os outros olhem para nós, tão-pouco por medo de sermos ignorados. Fazemo-lo para libertar a nossa mente das ataduras às emoções negativas, para assim podermos libertar todos os seres. E desta maneira estamos a faze-lo, compreendendo que o estamos a fazer, compreendendo que tudo é mera ilusão. Isso quer dizer simplesmente “que não estamos presos pelas nossas emoções negativas”. Estamos livres para nos agarrarmos a essa ideia de que podemos obter libertação das nossas ataduras.
E agora que lemos estes 8 versos, que fazemos? Como faremos?
O que quero dizer aqui é que é possível utilizar isto como uma prática diária. Os primeiros sete versos há que lê-los, pelo menos, um cada dia. O oitavo verso há que lê-lo cada dia acompanhado de um dos outros sete versos. No primeiro dia lemos o primeiro verso e o oitavo. No segundo dia, o segundo verso e o oitavo. E assim sucessivamente. O que necessitamos fazer é que esse verso, durante esse dia, seja importante. Assim pela manhã, quando nos levantamos, fazemos tudo o que fazemos normalmente. E logo nos surge, “pelo bem de todos os seres, vou recordar este ponto, este verso”. Não importa que não possamos praticar bem o que diz o verso, o que temos de fazer é que o dia seja “encantado”, “enfeitiçado”, por esse verso. E no dia seguinte, o seguinte verso. E desta maneira temos, para cada dia da semana, um verso sobre o qual reflectir. E não vos deixais incomodar por uma “boa prática”. Não tendes que procurar uma boa prática. Simplesmente, pela manhã, o ledes, uma vez, e ao passar umas horas volteis a lê-lo. É impossível que não tenhais tempo de ler oito linhas. Não vos pode fazer mal. Talvez pode ser que vos faça a vida um pouco difícil. O que vos custará? Dois segundos? Cronometramo-lo? 10 segundos? 14 segundos, 28 segundos os dois. 28 segundos cada 2 ou 3 horas. Assim que vamos dizer que o fazeis cada 6 horas. Tudo depende… (?) assim que o possamos fazer antes de irmos para a cama, e logo após nos levantarmos. Devemos dividir todo o tempo que passamos acordados em 6 partes, e ler o verso 6 vezes. No total, um máximo de 3 minutos por dia, e isto não é muito. Inclusive a pessoa mais atarefada do mundo, é impossível que não possa ter 3 minutos para fazê-lo. E assim que o tenhamos decorado, então temos que contemplá-lo. Podeis ser generosos e lê-lo mais de uma vez.
Assim foram estes os 8 versos. Enquanto estais lendo estes versos, por favor, pensai na impermanência. Tudo, tudo, começando pelo universo e terminando por nós mesmos, é impermanente. Se estamos felizes agora, isso é impermanente. Se estamos tristes e infelizes, isso também é impermanente. Se temos êxito, isso também é impermanente. Não só isto, também o nosso corpo é impermanente. E isto tudo depende das nossas acções. As acções positivas e negativas. E com base nisto, a aplicação da lei de causa e efeito é muito importante.
No caminho budista a felicidade depende das nossas próprias acções. Disto depende o nosso próprio sofrimento. Não podemos ser felizes tentando, de alguma maneira, subornar o Buda. Tão-pouco os Bodhisattvas. Confirmo-o. Não sei, o Buda gostaria? Não pode. E é por isto que o Buda ensinou os Ensinamentos do Dharma. Os Ensinamentos de Buda, realmente, são baseados nisto. O treino da mente também baseia-se nisto. Devido à lei de causa e efeito é possível treinar a mente. Diminuindo as causas do sofrimento e aumentando as causas da libertação, assim funciona o treino da mente. Não há nenhum mistério no treino da mente!
Prece pela longa vida de Jigmé Khyentsé Rinpoché:
OM SVASTI, DJIGMÉ RABJAM TSÉ EU TCHINLAP KYI
Om svasti! Que a intrepidez infinita das bênçãos de vida e de luz
KYENTSÉ DEUKAR LOUNGZIN NUDÉN TCHOK
Permita ao Poderoso supremo, encarnação profetizada de Khyentsé,
CHAPZOUNG MICHIK DORJÉ TARTÉN TCHING
Gozar de uma longa vida e de uma saúde indestrutíveis como o diamante.
TÉNDROR MÈNPÉ TRINLÉ TARCHIN CHO
Para levar a término todas as suas actividades destinadas aos ensinamentos e beneficiar todos os seres.
(Nota: Sua Santidade Dalai Lama também conferiu este ensinamento, em São Paulo chamado "Oito Versos que Transformam a Mente", a versão em português do brasil foi postada AQUI em junho passado.)
Comentários