Chatral Rinpoche sobre comer carne
Chatral Rinpoche em Godavari, Nepal, 2001.
O Compromisso Inabalável com a Ética de Chatral Rinpoche
Sobre Comer Carne
Comer carne não é permitido de acordo com os três votos: os votos de liberação individual, os votos de bodhisattva e os votos tântricos. Assim, Buda afirmou: "Eu nunca aprovei, não aprovo e nunca aprovarei uma dieta de carne". Ele declarou: "Meus seguidores não devem comer carne jamais. " 01
Em geral, tanto o açougueiro quanto quem compra a carne, sofrerão em tais reinos como os infernos que queimam e fervem.02 No Sutra Lankavatara, o Buda ensinou que "matar animais por lucro e comprar carne, são ambas más ações; esses tipos de ações resultarão em um renascimento nos terríveis reinos do inferno " e “aquele que come carne contrariando as palavras do Buda é mal-intencionado, (e é) destruidor do bem-estar dos dois mundos.” O Buda explicou além disso:
Nenhuma carne pode ser considerada pura, se tiver sido premeditada, pedida ou desejada, portanto abstenha-se de comer carne. Tanto eu, como outros Budas, proibimos os adeptos de comer carne. Aqueles seres sencientes que se alimentam uns dos outros, irão renascer como animais carnívoros. O comedor de carne é mal-cheiroso, desdenhoso e nasceu desprovido de inteligência. Ele pertence à classe mais baixa dos homens. Como os Budas, Bodhisattvas e Shravakas03 condenaram o consumo de carne, aquele que continua comendo carne, sem vergonha, será sempre desprovido de sentido. Aqueles que deixarem de comer carne, irão renascer como Brâmanes, sábios e ricos. Carne que se tenha visto, ouvido, ou suspeita-se ter vindo de um animal abatido para consumo, deve ser condenada. Teóricos que nascem como comedores de carne não vão entender isso. Essas pessoas farão comentários tolos sobre comer carne, dizendo: "A carne é adequada para comer, aceitável e autorizada pelo Buda." Um adepto aprecia comida vegetariana em quantidade adequada e vê a carne como imprópria para consumo, como a carne de seu próprio filho. Para aqueles que estão residindo na compaixão, eu proíbo a carne em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Comer carne é uma situação horrorosa e impede o progresso em direção ao Nirvana. Abster-se de comer carne é a marca dos sábios.04
No Sutra Parinirvana, Buda falou para seu discípulo Kashyapa:
Filho abençoado, aqueles que têm a atenção plena dos shravakas, não estão autorizados a comer carne de agora em diante. Mesmo que seja oferecido carne com fé genuína, deve-se vê-la como a carne de nosso próprio filho.
O Bodhisattva Kashyapa perguntou a Buda: "Senhor, por que você não permite que se coma carne?" Buda respondeu:
Filho abençoado, comer carne prejudica o desenvolvimento da compaixão, portanto, todos aqueles que seguem o caminho do Buda, não deveriam comer carne de agora em diante. Kashyapa, onde quer que um comedor de carne deite, sente ou ande, outros seres sencientes tornam-se temerosos ao sentir o cheiro dele. Filho abençoado, assim como quando um homem come alho, os outros se afastarão por causa de seu mau cheiro, do mesmo modo, quando os animais sentem o cheiro do comedor de carne, eles temem a morte ...
Kashyapa perguntou a Buda: "Senhor, como monges, monjas e aprendizes são dependentes de outras pessoas para a sua alimentação, o que eles devem fazer quando lhes são oferecidos alimentos com carne?" Buda respondeu a Kashyapa:
Separe o alimento e a carne, lave o alimento e depois coma. Você pode usar sua tigela de mendicância, se ela não tiver o cheiro ou o gosto da carne, do contrário você deve lavar a tigela. Se a comida tiver muita carne, não se deve aceitá-la. Não coma alimentos se você vir que há carne nos mesmos; se você fizer isso irá acumular não-virtude. Se eu falar minuciosamente sobre as razões de eu não permitir comer carne, não haverá fim. Eu não permito comer carne. Eu dei uma resposta breve, pois é chegada a hora do meu parinirvana.05
Buda elucidou ainda mais as falhas sobre comer carne no Sutra Angulimala, bem como no Compêndio dos Preceitos Shikshasamuccaya. Além disso, o ensinamento terma de Padmasambhava, chamado Rinchin Dronme, condena claramente o consumo de carne, tanto para leigos, quanto para pessoas ordenadas: "Todos os seguidores de Buda - monges ou monjas, aprendizes ou leigos - têm sete princípios fundamentais a seguir. Estes são: ‘os quatro princípios raiz’06, a abstinência de álcool, de carne e de alimentos à noite."
Apesar de alguns poderem argumentar que a condenação da carne pelo Buda, aplica-se apenas `as sete classes de votos Theravadayana07, e não está relacionada ao Mahayana e ao Vajrayana, a seguinte passagem do sutra Mahayana indica o contrário:
Comer carne é uma dieta que perpetua os três reinos [do Samsara: reinos do desejo, da forma e da não-forma]. É uma espada que corta o potencial de liberação. É um fogo que queima a semente do Estado Búdico. É um raio de relâmpago que dá fim ao renascimento nos reinos superiores ou a um renascimento humano precioso.
Uma vez que comer carne não é aprovado para ninguém, - não para monges, monjas ou leigos - aqueles que são praticantes budistas comprometidos, não deveriam comer carne nunca. Aquele que tomou o voto de Bodhisattva, incorrerá em grande falta, se comer a carne de seres sencientes que foram nossos pais em vidas passadas. Mesmo no Vajrayana, a carne é proibida até que se alcance a visão última da percepção pura.08
Trulshig Pema Düdül Rinpoche, narra uma visão pura que ele teve, após a qual parou de comer carne para sempre:
O Grande Compassivo [Avalokiteshvara] apareceu no céu a minha frente e falou: "Você fez algum progresso no caminho e adquiriu algum conhecimento, mas você carece de amor e compaixão. A compaixão é a raiz do Dharma e com compaixão é impossível comer carne. Uma pessoa que come carne, experimentará muito sofrimento e doença. Olhe para os miseráveis! Cada um está experienciando o sofrimento de acordo com seus feitos... Aquele que deixa de comer carne, não vai experienciar esse sofrimento. Em vez disso, os Budas e Bodhisattvas, e o guru, deidades e dakinis, irão regozijar-se e protegê-lo."
Muitos outros adeptos renomados condenaram a carne como um alimento venenoso. Machig Labdrön, a legendária praticante de chöd09, disse: "Para mim, comer carne está fora de questão. Eu sinto grande compaixão, quando vejo animais indefesos, olhando para cima com olhos temerosos". Rigzin Jigme Lingpa, um grande iogue da tradição Nyingma, afirmou:
Assim como na história de Arya Katyayana indo pedir comida10, vejo que o animal do qual esta carne veio, foi nossa mãe em vidas anteriores. Se assim for, podemos comer a carne de nossa própria mãe, que foi abatida por açougueiros? Imagine quanta preocupação surgiria! Portanto, se refletirmos sinceramente, de modo algum não sentiremos compaixão pelo animal.
Algumas pessoas que afirmam ser praticantes, dizem: "pelo menos um pouco de carne e álcool é necessário para manter-se saudável, caso contrário, fraqueza ou morte poderiam ocorrer." Isto não é verdade. No entanto, mesmo se a morte vier por causa da prática do Dharma de abster-nos de carne e álcool, isso então valerá a pena. Como o grande adepto Tsele Rigzin11 disse:
Do fundo do meu coração eu rezo (para)
Nunca estar com carnívoros e bebedores.
Nesta e nas vidas que virão
Possa um ordenado nunca nascer onde carne
E álcool são usados sem moralidade.
Mesmo se eu morrer
Devido à ausência de carne e álcool,
Eu estarei vivendo em conformidade com os preceitos do Buda.
Assim eu serei um praticante genuíno!
O Bodhisattva Jigme Chökyi Wangpo [Patrul Rinpoche] disse:
Como Budistas, tomamos o refúgio triplo12. Para tomar refúgio no Dharma, é preciso praticar a não-violência para com os seres sencientes. Assim, se continuarmos a comer carne - a qual veio do abate de animais inocentes - então não é isso uma contradição dos nossos compromissos budistas?
Conhecendo todas as falhas do consumo de carne e álcool, eu fiz o compromisso de abster-me em frente da grande árvore Bodhi, em Bodhgaya, tendo os Budas e Bodhisattvas das dez direções como minhas testemunhas. Eu também declarei essa conduta para todos os meus monastérios. Portanto, pede-se a quem quer que me escute, não transgredir esse aspecto crucial da conduta ética Budista.
Notas:
01.Sutra Lankavatara (tib. Lang kar gshegs pa’i mdo)
02.Na cosmologia budista, há seis reinos de existência samsárica, todos marcados por seus próprios tipos de sofrimento. O reino dos deuses é marcado pela preguiça e subseqüente falta de mérito acumulado, o que leva ao temor de descer aos reinos inferiores ao final de sua vida longa e luxuosa. Os deuses invejosos (asuras) têm uma vida exuberante, mas estão sempre brigando por causa da inveja. O reino humano é marcado pelo sofrimento do nascimento, velhice, doença e morte; o sofrimento experienciado quando as coisas mudam, o sofrimento que combina o sofrimento anterior e o sofrimento resultante da ação negativa anterior. O reino animal é marcado pela ignorância, os animais não podem falar com outras espécies e por isso são facilmente explorados pelos seres humanos e estão freqüentemente em situações indefesas ou temíveis. Os fantasmas famintos (pretas) têm desejo insaciável e apego, e são descritos como tendo bocas minúsculas e barrigas enormes, o que os leva a estar perpetuamente famintos e sedentos. O sexto reino representa a raiva e o ódio, e inclui oito tipos de infernos quentes, oito tipos de infernos frios e outros dois tipos de inferno. Chatral Rinpoche está se referindo aos dois tipos de infernos quentes – o que ferve e o que queima.
03.Shravaka é um tipo de praticante de meditação budista, altamente realizado, de acordo com a tradição Theravayana.
04.Sutra Lankavatara (tib. Lang kar gshegs pa’i mdo)
05.Parinirvana refere-se à passagem física do Buda do reino humano, para o estado da Iluminação perfeita.
06. Os quatro princípios raiz são, abster-se do seguinte: má-conduta sexual, matar, roubar e mentir.
07.As sete classes de votos vinaya são: votos de monge, votos de monja, votos de monge aprendiz, votos de monja aprendiz, votos intermediários de monja, votos masculino e feminino para praticantes leigos.
08.Um iogue avançado como Tilopa, pode liberar animais como peixes, ao consumir as partes de seu corpo morto. Outra prática ióguica avançada, é comer o que normalmente é considerado tabu, vendo isso como o puro néctar na sua essência. (Nota da revisão de Shabkar.org: incluindo nisto estão as “cinco carnes”; de elefante, cachorro, vaca, cavalo e humanos e os “cinco néctares”; de urina, fezes, cérebro, sangue e sêmen).
09.Chöd significa “cortar” e é uma prática para a destruição do apego ao “eu”, através da oferenda de seu próprio corpo, cortado em pedaços e convertido em puro néctar, como sustento para os iluminados, os fantasmas famintos, demônios e outros seres sencientes. É tradicionalmente praticada em cemitérios e crematórios.
10. Um dia o arhat Arya Katyayana, enquanto pedia oferendas de alimento, encontrou um homem com uma criança no colo. O homem comia um peixe prazerosamente e jogava pedras em uma cadela que tentava pegar os ossos. Entretanto, o que o mestre viu com sua clarividência foi: o peixe havia sido o pai do homem naquela mesma vida e a cadela havia sido a mãe. Um inimigo que ele havia matado em uma existência passada, tinha renascido como seu filho como pagamento cármico pela vida que ele tirara. Katyayana exclamou: “Ele come a carne do pai, bate na mãe, e embala no colo o inimigo que matou; a esposa está mordiscando os ossos do marido. Dou gargalhadas ao ver o que acontece no show do samsara! – As Palavras do Meu Professor Perfeito, de Patrul Rinpoche. Editora Makara.
11.Tsele Natsok Rangdrol (rTse le sNga tshogs Rang grol, 608-?).
12.“Refugio triplo” significa tomar refugio no Buda, no Dharma (os ensinamentos do Buda) e na Sangha (a comunidade dos praticantes).
Parte do capítulo 2, do livro “Compassionate Action” de Chatral Rinpoche, editado, introduzido e anotado por Zach Larson. Editora Snow Lion Publications. USA 2007.
Tradução do tibetano para o inglês de Geshe Thubten Phelgye e Aaron Gross, revisado por Zach Larson. Tradução do inglês para o português de Marcelo Saula, revisado por Pema Chödren.
Traduzido e publicado com a permissão de Zach Larson. Abril de 2011.
Comentários
Parei com o detestável hábito de comer carne há cerca de 4 anos e desde então minha saúde aumentou consideravelmente, derrubando o tabu de que precisamos de carne para viver.
Além disso, segundo os preceitos Budistas, em especial a compaixão, devemos viver de forma que causemos o mínimo sofrimento possível aos outros seres e certamente, comer carne causa muito sofrimento.
Em boa parte, porque tal atitude está muito ligada ao prazer sensorial, desejo e gula.
Ainda, acredito que seja impossível viver de forma equânime quando nos alimentamos de outros seres sencientes.
E, fico triste quando alguns mestres agem da maneira omissa quanto a este precioso assunto, muito embora, pelo que sei comer carne seja proibido nos monastérios e centros de prática.
OM AH HUM