Os Quatro Pensamentos Ilimitados
Celebrando a parceria com a extinta revista portuguesa Adarsha, através de sua ex-diretora Tsering Paldron, o quietamente reproduz aqui um precioso ensinamento de Jigme Khyentse Rinpoche.
Os Quatro Pensamentos Ilimitados
Por Jigme Khyentse Rinpoche
Quer pratiquemos ou não o Dharma, todos possuímos a natureza de Buda, a que eu chamaria uma insustentável ternura. Esta ternura exprime-se em dois tipos de ambiente: um ambiente de medo e um ambiente de coragem. Quando se exprime num ambiente de medo, fá-lo através daquilo a que se chama os três venenos. Gostaria de dar um outro nome a estes três venenos. À ignorância gostaria de lhe chamar inércia, ao apego, tendência à espreguiçadeira*, e à cólera gostaria de chamar ingerência.
Estes três factores são a matéria de que o medo é feito. Não falo necessariamente de um grande terror; o medo pode tornar-se algo de banal e até imperceptível como por exemplo, a sensação que nos impele para o aborrecimento, ou para a curiosidade. É assim que aquilo a que se chama obscurecimentos, as emoções negativas, existe como efeito destes três elementos. Quando estamos sob o seu poder, chamamos a isso samsara.
Na verdade, estar no samsara é simplesmente interpretar esta sensibilidade profunda da maneira menos difícil: antes de mais com a inércia – não temos vontade de nos mexermos, de arranjar outra maneira de a traduzir.
Aliás não o fazemos, e quando nos habituamos a isso, há necessariamente uma tendência à espreguiçadeira, a que chamamos apego. É confortável, estamos habituados, ganhamos-lhe gosto.
Cada vez que alguma coisa vem alterar este estado de coisas, cada vez que há um pedido de movimento, de não-inércia, surge então o sentimento de ingerência e tornamo-nos defensivos.
É assim que a maior parte dos seres sofrem no samsara dos seis mundos. Mas podemos também encontrar um outro meio de traduzir esta insustentável ternura num ambiente de coragem. Trata-se da coragem de ir mais longe, de fazer uma interpretação muito mais profunda. Falamos de insustentável ternura. Ora, para ousarmos o insustentável é preciso muita coragem.
Penso que no mais profundo de nós existe esta ternura, mas é-nos difícil ir até lá. Interpretamos então esta ternura como uma fragilidade, uma vulnerabilidade.
Ao sentir esta vulnerabilidade, desenvolvemos todo tipo de estratégias de proteção, passando por uma defensiva que pode mesmo ir até à agressão. Mas ainda assim, profundamente, esta ternura está presente; sem ela, ninguém seria defensivo ou ofensivo.
Quando vemos alguém zangado, desanimado, triste ou irritado, sabemos que tudo isso não passa dum mal-entendido, duma má interpretação.
Qual é a outra interpretação possível? Podemos exprimir esta ternura através daquilo a que chamamos os Quatro Pensamentos Ilimitados. O primeiro é a equanimidade. O que significa a equanimidade? Será que é uma espécie de tampa que abafa tudo? Qual é o perfume dessa equanimidade? Penso que se trata da revolta dum certo aspecto do nosso espírito, que recusa continuar sob o domínio das emoções, decide ser imparcial e ultrapassar as várias referências pré-estabelecidas. Por exemplo, apesar de estarmos treinados para desejar a felicidade de todos os seres, temos às vezes a idéia de que essa felicidade deveria estar mais do nosso lado, ou mais do lado dos outros.
A princípio, a imparcialidade consistiria simplesmente em ousar pensar que é possível ser imparcial. Quando dizemos: “Eu tenho de praticar a imparcialidade”, este eu toma muito espaço, é muito pesado. Um exemplo: quando penso nos meus mestres, Khyentse Rinpoche ou Kangyur Rinpoche, na vida que levaram, sinto-me muito inspirado, e esta inspiração torna-se tão intensa que quero logo apoderar-me dela. Ora, em vez disso, ao sentir essa inspiração, poderia simplesmente tomar consciência de que me é possível vivê-la, e assim acolher plenamente esse instante.
Khyentse Rinpoche dizia muitas vezes que a grande dificuldade dos praticantes desta época consiste no fato de quererem obter logo resultados duma prática, assim que ouvem falar dela. Parece-me que de fato somos assim.
Se assistirmos a uma passagem de modelos e virmos uma pessoa magra com roupas que nos agradam, talvez queiramos logo comprá-las e vesti-las. Porém, se calhar somos gordos ou magros demais e acabamos por ficar deprimidos.
Para praticarmos a imparcialidade, temos de começar por aplicá-la a si mesma, sem nos precipitarmos, como habitualmente. Muitas vezes quando praticamos, esquecemo-nos quanto nos é difícil ver o fato que usamos, aquilo a que chamamos a personalidade, o carácter. Um pouco como a história do homem que tinha perdido um burro. Um homem tinha oito burros e um dia resolveu contá-los. Reparou que lhe faltava um e correu tudo à procura dele. Finalmente, uma outra pessoa, ao contar os burros, apercebeu-se de que o homem se tinha esquecido de contar o burro sobre o qual estava montado.
Portanto, quando penso na imparcialidade, não é numa imparcialidade com enormes lupas voltadas para dentro. Os Quatro Pensamentos Ilimitados são mais como uma antena tanto voltada para o exterior como para o interior.
O que procuramos realmente é a liberdade. Dizemo-nos livres porque somos homens e mulheres que vivem numa democracia. Mas muitos de nós têm a impressão que têm de usar a liberdade de que dispõem: se se pode fazer algo, tem que se fazer. Mas se tem que se fazer, deixa de ser uma liberdade!
Aqui, queremos ir muito mais longe e ganhar liberdade em relação as nossas emoções.
Normalmente são as emoções que nos ditam a maneira como reagimos com cada pessoa. Mas graça à noção de imparcialidade, passamos a ser nós a decidir.
É-nos difícil, por enquanto, imaginar o que possa ser a imparcialidade dos Budas. Mas esta prática tem de começar no ponto em que estamos. Sentimos a inspiração da imparcialidade, mas não temos que a desejar logo sobre os outros. Não devemos confundir o desejo de sentir a imparcialidade com a imparcialidade propriamente dita.
Não é que essa imparcialidade esteja errada, mas não é necessariamente ilimitada, limitada que está pelo nosso desejo.
Normalmente a nossa imparcialidade está limitada a 180 graus: vemos apenas o que está à nossa frente. Devemos tentar cultivar uma imparcialidade de 360 graus. Imparcialidade em que? Imparcialidade no fato de podermos expressar a todos os seres o amor e a compaixão que sentimos. Em querermos ultrapassar as fronteiras habituais do amor e da compaixão.
Mas o que é o amor? Nos textos diz-se que o amor é querer o bem dos outros, um pouco como o desejo de felicidade e de sucesso para os seus filhos que sente um pai ou uma mãe. Não se trata tanto do fato de desejar, mas da atmosfera terna e doce criada por essa sensação. Aquilo a que gostaria de chamar amor parece-se mais com uma abertura que não precisa de desculpas. Estamos todos obcecados com desculpas. Por exemplo, se temos alguns minutos livres, podemos querer simplesmente sentar-nos sem fazer nada. Mas se alguém bater à porta, imediatamente nos levantamos para abrir uma janela, ou nos endireitamos de modo a sugerir que talvez estivéssemos a praticar, ou dizemos à pessoa que estávamos cansados, mesmo que seja mentira. Porque havemos de procurar desculpas? Esquecemo-nos de que não precisamos de nos esconder debaixo das saias da nossa mãe samsárica, as emoções, para sermos aceitáveis enquanto seres humanos.
Na realidade os Quatro Pensamentos Ilimitados não são quatro coisas diferentes mas quatro faces da mesma coisa. De quê? De algo que estremece em nós cada vez que uma palavra vibra no ar, cada vez que vemos uma cor.
E a compaixão é o quê? Penso que é um sentimento insuportável.
Não é necessariamente terno, nem sumarento1, nem doce. Quando esse estremecimento se torna insuportável e o deixamos traduzir-se em ternura – eis a compaixão. Este sentimento de insustentabilidade é semelhante ao que sentimos em relação à fealdede2 exterior, no sentido em que uma mancha algures3 pode ser insuportável. Interiormente, essa mancha é o sofrimento dos seres. Claro que quando isso acontece, os três venenos estão presentes e, ou nos convidam a fechar os olhos, dizendo: “ É insuportável!”, ou nos levam a tentar encontrar alguém sobre quem despejar toda a nossa compaixão.
É a tendência à espreguiçadeira que nos dá essa vontade. Não quer dizer que não o devamos fazer, mas temos de estar conscientes disso. Poder constatá-lo, já é um passo. Os venenos só funcionam quando não nos apercebemos deles.
Queria também mudar um pouco a nossa idéia de compaixão. Neste contexto, diria que a compaixão é a coragem: ousar manter os olhos abertos quando é difícil, quando é doloroso. Os mais assustadiços desmaiam logo, mas há quem demore um pouco mais. A compaixão é não fechar os olhos, não esperar pelo momento da espreguiçadeira, desejando que alguém faça tudo por nós. Esta noção de férias é um convite à fraqueza interior.
Por exemplo, se a meio de um longo percurso, após quatro ou cinco horas de caminhada, estivermos cansados e pensarmos: “Mereço um pouco de descanso”, paramos. Sentimo-nos tão bem que não queremos continuar.
Se cedermos à tentação, pensando: “Só mais um bocadinho...”, não conseguiremos chegar ao fim do caminho. Esta fraqueza, ou apego, instalou-se em nós. A atitude que devemos ter é como quando caímos dum cavalo: temos de montar de novo imediatamente ou nunca mais seremos capazes de o fazer. É mais uma vez essa noção de espreguiçadeira que se instala. A única maneira de nos vermos livres dela é pensando que a espreguiçadeira é impossível, que é uma noção que não existe na via do Buda. Não quer dizer que não haja repouso, mas trata-se doutra forma de repouso, a que chamarei derreter.
Há dois remédios para uma pessoa obesa que se cansa facilmente. Ou repousa, e vai repousar-se a vida inteira, ou emagrece e já não tem que parar de três em três passos. Esta última solução é a melhor, apesar de ser mais demorada. A noção de Iluminação, neste caso, é derreter a gordura.
E a alegria, o que é a alegria ilimitada? É simplesmente uma alegria que se estende por todas as direções, em 360 graus. É não ter medo da alegria. Por vezes, quando sentimos alegria, pensamos: “Não devia; é o apego; é o orgulho, etc.” Mas quem diz isso é o ego. É o ego que não quer ser orgulhoso e por isso se abaixa. Mas de fato o que ele faz, ao baixar a cabeça, é tentar pousar o traseiro no trono. Portanto, mesmo quando ele diz que não se deve pensar em algo, ou quando se sente culpabilizado por estar contente, não é por isso que a partida está ganha.
Quando estamos felizes, penso que podemos ousar essa alegria pessoal sem sentir que devíamos manejar a prática com luvas, como se estivesse contaminada. Por exemplo, se praticamos e nos sentimos bem, estamos felizes por um lado, mas por outro lado temos medo de nos apegarmos e pomos umas luvas. Não é necessário.
Se de cada vez calçarmos luvas, um dia acabamos com a mão engessada e deixamos de sentir o que quer que seja. O amor e a alegria com esta noção de infinito não são de modo algum um convite a uma compaixão ou a um amor narcisistas. Em contrapartida, não é indispensável rejeitar o que sentimos, porque isso é, na verdade, um narcisismo disfarçado.
Este texto é a transcrição dum ensinamento oral dado por Jigme Khyentse Rinpoche no templo de Ogyen Kunzang Chöling, em Bruxelas, a 24 de março de 1995.
Publicado originalmente na revista Adarsha, n#01 - julho/setembro de 1996.
Publicado originalmente na revista Adarsha, n#01 - julho/setembro de 1996.
*Espreguiçadeira: Preguiceira, cadeira de bordo num transatlântico. Cadeira para repouso ou para dormir. O Rinpoche refere-se à tendência que temos para nos instalarmos confortavelmente nas situações.
1- Sumarento: deleitoso, delicioso, suculento. que tem muito sumo ou suco, laranja sumarenta.
2- Fealdade: estado ou qualidade do que é feio; feiúra: fealdade de um rosto, de um vício.
3- Algures: em algum lugar; em alguma parte. (Antôn.: nenhures.)
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