O Refúgio

Continuando nossa parceria com a saudosa revista portuguesa Adarsha, postamos a transcrição de um ensinamento dado por Shechen Rabjam Rinpoche no centro budista Nyima Dzong, na França, em julho de 1996. 

Nota para a leitura: nas traduções brasileiras usa-se mente no lugar de espírito.


Shechen Rabjam Rinpoche



O Refúgio 


Hoje vou transmitir-vos o voto de refúgio. Mas gostaria de começar por vos explicar um pouco o que significa esse voto e a razão pela qual o tomamos. 

Todos nós possuímos o Tathagatagarbha, a natureza de Buda ou matriz da Iluminação. Contudo, estando essa natureza velada pela ignorância original, andamos sem cessar às voltas no samsara, o ciclo das existências. Presentemente, obtivemos uma existência humana e encontramos a via do Dharma. Possuímos assim aquilo a que se chama uma preciosa vida humana. Se a utilizarmos bem, efectivaremos a nossa natureza de Buda. Se, pelo contrario, esbanjarmos esse potencial, seremos como um mendigo que vive numa cabana miserável, quando debaixo dela se encontra uma grande quantidade de ouro. Não só temos a sorte de possuir uma preciosa existência humana, como encontramos também, inúmeras vezes, grandes mestres e seres extraordinários como Khyentse Rinpoche ou Dudjom Rinpoche, que são como o Buda em pessoa. 

Evidentemente, encontrar tais seres não é suficiente. Devemos igualmente tirar partido dessa oportunidade, evitando a preguiça e não deixando o Dharma para mais tarde. Comecemos portanto a praticar o Dharma desde já com toda a energia. A vida humana é muito curta e ninguém escapa à morte. Pelo contrário, cada instante que passa aproxima-nos inexoravelmente dela. Observemos à nossa volta todos os familiares, irmãos, irmãs, amigos e todos os que já desapareceram. 

Como não somos diferentes deles, a nossa vez chegará também. Se mantivermos uma reflexão contínua sobre a impermanência da vida, sentiremos espontaneamente um grande interesse pelo Dharma. Guru Rinpoche utilizou muitas imagens para demonstrar a necessidade de reflectirmos sobre a impermanência. Dizia, por exemplo, que nós somos como alguém que está agarrado a um tufo de ervas sobre um precipício. A impermanência é semelhante a dois ratos, um branco e um preto, que vão roendo as ervas uma a uma – o branco representando o dia e o preto a noite. O tufo a que as mãos se agarram é a nossa vida, e o desaparecimento das ervas simboliza a sua passagem inexorável. Se estivermos suspensos sobre um precipício, não estaríamos aterrorizados? Não procuraríamos todos os meios possíveis para nos libertamos dessa situação? Ora, é exactamente assim que devemos reagir face à impermanência. Desse modo, acabaremos por concluir que temos de praticar o Dharma a todo o custo. 

Vejamos igualmente como tudo o que nos rodeia, e absolutamente tudo no universo, está sujeito à impermanência e à mudança. Se as coisas não mudassem constantemente nunca envelheciam, ou então envelheciam subitamente. Mas tal não é o caso, pois a impermanência faz parte da sua natureza. Mesmo grandes mestres como Khyentse Rinpoche e Dudjom Rinpoche desapareceram. Como poderíamos nós, seres comuns, seguir um destino diferente? 

Certas religiões dizem que é um ser superior – seja qual for o nome que se lhe dá – que decide se uma acção é boa ou má. Mas no Budismo diz-se que realizamos um acto negativo ou não meritório, se, movidos por uma má intenção – é esse o ponto essencial -, fizermos mal aos outros. Pelo contrario, um acto é bom ou meritório, se fizermos bem aos outros com uma intenção positiva. 

É simples: é como quem diz que colhemos o que semeamos. O mundo funciona assim, basta olharmos à nossa volta para o constatarmos. Não se pode obter um fruto diferente da semente que se plantou. 



Possuímos assim aquilo a que se chama 

Uma preciosa vida humana. 

Se a utilizarmos bem, efectivaremos a 

nossa natureza de Buda. 



A propósito da importância atribuída à intenção, conta-se no Tibete a seguinte história: um dia alguém viu à beira de um caminho um tsa-tsa (uma pequena estatueta moldada em barro, que é normalmente um objeto de respeito). Pensando que a chuva podia desfazer o tsa-tsa, cobriu-o com uma velha sola de sapato. Outra pessoa que por ali passou, pensou: “Quem terá posto uma sola velha e toda suja em cima dum tsa-tsa?” e tirou-a. 

Vistas do exterior, estas duas acções são completamente opostas, mas do ponto de vista da intenção – que era pura – são idênticas, e valeram aos seus autores o mesmo bom karma. Esta história mostra que é, em grande parte, a intenção que torna um acto bom ou mau. 

O guia que nos mostra a verdade das coisas é o Buda, o que está liberto de todos os defeitos e possui todas as qualidades. A via sem erro que ele ensina é o Dharma, e os que nos acompanham na prática desta via constituem o Sangha. 

O Sangha é um pouco como os gansos selvagens, que quando migram voam todos juntos em forma de V, para poderem atravessar os oceanos mais facilmente. É formado pelos que se unem para atravessar o oceano de sofrimentos do samsara. Buda, Dharma e Sangha são as chamadas Três Jóias. 

Shechen Rabjam durante cerimonia de refúgio em Nyma Dzong, julho de 1996

Antes de enveredarmos pela via do Dharma devemos fazer delas o nosso refúgio. Tomar refúgio nas Três Jóias é extremamente benéfico. As Escrituras dizem que já o simples facto de as recordarmos ou de ouvirmos o seu nome possui em si inúmeras virtudes. A esse propósito, vou contar outra história: era uma vez um Lama que estava a meditar numa ermida do Tibete. Ora havia um ladrão que tinha o hábito de vir roubar-lhe a tsampa, ao ponto de o Lama, já quase sem provisões, estar à beira de interromper a sua prática. 

Um dia o Lama ficou à espera do ladrão e, assim que ele entrou, apanhou-o e bateu-lhe três vezes com um pau, dizendo: “Tomo refúgio no Buda! Tomo refúgio no Dharma! Tomo refúgio na Sangha!” O homem fugiu a sete pés e, pelo caminho, deparou com uns espíritos maléficos, que lhe iam pregar uma grande partida. Mas, como ele não parava de repetir a fórmula do refúgio – sem querer, só porque estava associada à tareia que tinha acabado de levar – os espíritos não conseguiram fazer-lhe mal. 

É inútil dizer que quando fazemos das Três Jóias o nosso refúgio, o seu poder e as bênçãos estão presentes. Contudo, temos também pelo nosso lado de fazer algumas coisas. A primeira é seguir um mestre espiritual. 

Shechen Rabjam com seu avô e mestre espiritual Dilgo Khyentse Rinpoche

Diz-se nas Escrituras que se não existissem mestres espirituais nenhum Buda poderia aparecer. Diz-se também que as bênçãos dos Budas e Bodhisattvas são como a chuva que cai do céu, e que, tal como precisamos de um recipiente para a recolher, para recebermos as bênçãos precisamos de um mestre espiritual. Antes de seguirmos um mestre devemos examiná-lo, não para lhe encontrar defeitos a todo o custo, mas para vermos se ele corresponde às nossas aspirações, se é ou não a pessoa que nos convém. 

Após termos depositado a nossa confiança num mestre, devemos segui-lo cultivando os quatro tipos de fé. A primeira é a fé inspirada. Ela surge em nós quando ouvimos falar de um mestre, quando ouvimos a sua história, e ficamos tão emocionados que às vezes até temos arrepios. A segunda é chamada a fé ardente: quando tomamos consciência das qualidades do mestre, desejamos tornarmo-nos como ele. A terceira é a fé confiante: não temos qualquer dúvida sobre o que o mestre faz, sobre a sua vida e sobre o que ele representa. 

A quarta, a chamada fé irreversível, é a mais importante e é também o culminar das outras três. É uma confiança total e inabalável. 

Impregnados por estes quatro tipos de fé, praticamos os ensinamentos do mestre. Isso significa que os escutamos, reflectimos sobre eles e de seguida experimentamo-los pela meditação. Quais são esses ensinamentos? Em primeiro lugar, a determinação de nos libertarmos do samsara. Sem uma determinação autêntica de nos libertarmos, não podemos praticar a via de maneira autêntica. Por que? Porque a nossa prática não é firme. Por outro lado, interiormente, o nosso espírito está sempre pronto para se deixar cativar. Somos como um sempre-em-pé que ao menor impulso se inclina daqui para acolá. Assim que um objecto dos sentidos nos seduz, distraímo-nos imediatamente. Se a nossa determinação não for perfeita, nada nos segura. Há uma célebre frase de Tilopa em que diz; “Naropa, não são os objectos que te prendem, é o apego. Corta o apego, Naropa!” 

Quando dizemos que as coisas são boas ou más, agradáveis ou desagradáveis, isso é apenas uma projecção do nosso espírito. Se as coisas fossem verdadeiramente boas ou más em si, seriam apercebidas desse modo por todos os seres do universo. Ora uma mesma coisa pode ser bonita para uns e feia para outros. Compreendamos que aquilo a que chamamos bom ou mau é uma invenção do nosso espírito. Quanto mais estivermos concientes disso, mais o nosso apego diminuirá. 
 

Compreendamos que aquilo a que chamamos bom ou mau 
 é uma invenção do nosso espírito. 



Conta-se que certo dia uma pessoa estava a ter um pesadelo. Era atacada por um espírito maléfico, uma espécie de fantasma, e estava tão aterrorizada que não sabia o que havia de fazer. 

Em desespero, resolveu perguntar ao próprio fantasma: “Que hei-de fazer?”. O fantasma respondeu: “Não faço idéia, afinal o sonho é teu!” As Escrituras repetem constantemente que os fenômenos são como sonhos ou ilusões mágicas. 

Presentemente, enveredámos pela via do Vajrayana, o Veículo de Diamante. Qual é o fundamento desta via? É o Bodhicitta, o Espírito de Iluminação. E a base desse Espírito de Iluminação é o desejo de fazer bem aos outros e a compaixão por todos os seres. Como o contrário dessa compaixão é a cólera, ou o ódio, o nosso primeiro dever é não sucumbir à cólera quando ela se levanta em nós. À partida ela é minúscula, mas de tanto a alimentar com nossos pensamentos, acaba por ficar enorme. 

Khyentse Rinpoche repetia muitas vezes que não devemos meditar como um cão a quem se lançam pedras. Quando lançamos uma pedra a um cão, o cão corre atrás dela. Do mesmo modo, quando emerge em nós um pensamento de cólera, vamos atrás dele. O praticante deve conduzir-se como um leão. 

Se lançarmos uma pedra a um leão, ele vai enfrentar-nos e ficamos logo a saber que ele não vai dar a oportunidade de o importunarmos uma segunda vez. Isto quer dizer que se formos atrás dos pensamentos, outros virão; mas se nos voltarmos para o espírito que os projectou, esses pensamentos desaparecerão por si próprios. Um dia um amigo contou-me a história de um homem que estava a fazer uma grande viagem de carro e teve um furo. Parou, abriu o porta-bagagens e viu que não tinha macaco. Olhou à sua volta e, vendo uma casa, decidiu ir pedir ajuda. Pelo caminho começou a pensar: “Sabe-se lá se essas pessoas são simpáticas, se calhar não vão querer emprestar-me o macaco. Será possível fazerem semelhante coisa! E eu que estou tão cansado e venho de tão longe... Se não me emprestarem um macaco, é caso para dizer que são realmente pouco prestáveis.” 

Assim, à medida que ia se aproximando da casa, cada vez estava mais irritado. Quando chegou à porta estava completamente fora de si. Assim que o proprietário apareceu, o nosso automobilista disse-lhe com maus modos: “Não preciso da porcaria do seu macaco para nada!” É assim que quando deixamos um pequeno pensamento negativo ganhar importância, perdemos o seu controle. Acabamos por criar imensos problemas nesta vida, acumulamos mau karma para as próximas e os nossos venenos mentais proliferam cada vez mais. Se todos os seres, nossos pais e mães de outrora, andam há tempo às voltas no samsara, é justamente por causa dos pensamentos negativos. Por conseguinte, o Espírito de Iluminação consiste em sentir por eles uma grande compaixão. 

Shechen Rabjam em Nyima Dzong, julho de 1996

Em resumo, o que é importante, quando enveredamos pela prática do Vajrayana, é estarmos antes de mais determinados a libertarmo-nos do samsara. Esta determinação corresponde ao voto de libertação individual do Pequeno Veículo. A segunda coisa indispensável é o amor e a compaixão do Espírito de Iluminação, ou seja, a atitude do Grande Veículo. Por fim, no que diz respeito propriamente ao Vajrayana, temos de cultivar a fé, a devoção e a visão pura. A fé cria o elo entre o mestre e o discípulo. A fé é comparada a um aro, e as bênçãos do mestre a um gancho. Se o discípulo não consegue apresentar ao mestre o aro da fé, o mestre não terá onde agarrar com o gancho da sua compaixão. Também se compara a compaixão e as bênçãos do mestre aos raios do sol que brilham sobre toda a gente; nós é que decidimos se vamos para o sol ou se ficamos à sombra. 

A visão pura está ligada à ausência de emoções negativas. Quando temos poucas emoções negativas os fenômenos exteriores parecem-nos puros. Mas, se pelo contrario, o nosso espírito estiver repleto dessas emoções, vemos as coisas de um modo impuro. O importante é pois domar o nosso espírito. Então, os fenômenos exteriores aparecem-nos naturalmente de um modo puro. 

Teremos também subjulgado todos os nossos “inimigos” exteriores, exactamente como quando calçamos uns sapatos nos protegemos de todos os espinhos, sem ser preciso forrar o mundo inteiro de couro. 

No Vajrayana o nosso apoio são as Três Raízes: o mestre, que é a fonte das bênçãos; os yidams, que são a fonte das realizações; e as dakinis, que são a fonte das actividades e que nos ajudam a dissipar os obstáculos na Via. Se pudermos praticar estas Três Raízes e eliminar as nossas emoções negativas, efectivaremos a nossa natureza de Buda, ou seja, atingiremos a Iluminação. O Vajrayana é chamado a via rápida. Contém inúmeros métodos e não é difícil de praticar. Por exemplo, para transformarmos o nosso constante apego ao ego e à nossa forma habitual, visualizamo-nos sob a forma de uma divindade e pensamos: “Sou a divindade”. Este é um dos métodos extraordinários do Vajrayana. 

Agora, comecemos pelo princípio: vamos tomar refúgio nas Três Jóias. Ao mesmo tempo, vamos tomar o compromisso de fazer três coisas. Antes de mais, após termos feito do Buda o nosso refúgio, não tomaremos refúgio nas divindades mundanas, ainda presas ao samsara. Por que? Porque o Buda, que é o refúgio supremo, está liberto do samsara, e tomar refúgio em seres ainda prisioneiros do samsara não nos traz qualquer auxílio. Devemos igualmente manifestar um grande respeito por tudo o que simbolize o Buda: estátuas e outras representações, sejam belas ou não. Tendo tomado refúgio no Dharma não faremos mal aos outros, pois a essência do Dharma é fazer o bem dos seres. Não só evitaremos fazer-lhes mal fisicamente, como teremos o cuidado de nem sequer pensar nisso. Daremos igualmente provas de um grande respeito por tudo o que representa o Dharma, a saber, os livros em que se encontra e mesmo as letras desses livros. O Buda declarou que no futuro faria o bem dos seres sob a forma de letras. Temos pois de ter o maior respeito pelas letras que servem de suporte às palavras do Buda. 

Finalmente, depois de termos tomado refúgio no Sangha, devemos evitar viver com pessoas que não respeitam o Dharma e que pensam mal dele. Por que? Porque permanecendo em sua companhia seremos pouco a pouco influenciados pelos seus actos e pelas suas emoções negativas, e acabaremos por ter as mesmas idéias que eles. Devemos igualmente ter um grande respeito por tudo o que simboliza o Sangha, ainda que seja um simples hábito monástico. 

                                                                                                    (tradução Adarsha


Publicado originalmente na revista Adarsha, n#05 - outono de 1997.
Reproduzido com autorização.

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