O Guru e o Aluno no Vajrayana

O Guru e o Aluno no Vajrayana

por Dzongsar Jamyang Khyentse

Escrevi o que segue em resposta a vários pedidos, inclusive alguns por parte da imprensa, para que expusesse minha visão da situação atual na Sanga Rigpa sobre o comportamento de Sogyal Rinpoche.

Não respondi a nenhuma das perguntas que me foram colocadas pela imprensa até agora porque o que quero dizer não é para ser editado ou alterado de nenhum modo. Infelizmente, os jornalistas sempre picotam o texto, e escolhem a dedo trechos e frases que se encaixem em suas próprias preconcepções. Caso você não acredite em mim, apenas fique cinco minutos olhando a CNN, a Fox News, a al-Jazeera, o New York Times, o Guardian ou a Breitbart News Network. Logo você descobrirá qual é a natureza da “liberdade de imprensa” na sociedade moderna. Infelizmente, a maioria das revistas “budistas” e outros periódicos não é diferente.

Então aqui está o que quero dizer, sem cortes ou edições. Por favor, concentre toda paciência que tiver disponível e leia a coisa toda do início ao fim; este texto deve ser lido inteiro, não aos fragmentos.

Em primeiro lugar, porém, acho que preciso apontar que o que quero expressar diz respeito apenas ao relacionamento entre guru e aluno específico ao vajrayana. Como este tipo de relacionamento guru-discípulo é um fenômeno vajrayana, eu gostaria de poder dizer que, se você não é um praticante do vajrayana, não precisa dar atenção ao que vem a seguir, ou sequer se importar com isso. Mas o fato é que não posso dizer isto. E por quê? Porque, independente de alguém achar isto bom ou ruim, o vajrayana está associado ao budismo, e assim ao tratar de uma situação vajrayana, não consigo evitar falar sobre o budismo e o futuro do budismo.

Tendo dito isto, tenho certeza que os budistas do Theravada e de outras escolas mahayana que foram arrastados para este debate público apenas por estarem conectados ao budismo, devem estar arrancando os cabelos de frustração. Simpatizo com essa situação; se eu estivesse no lugar de vocês, sentiria o mesmo.

Porém, precisamos estar bem cientes quanto a uma coisa. Há uma distinção bem clara entre o papel de Sogyal Rinpoche como mestre vajrayana e seu papel enquanto professor budista bastante público, na direção de uma organização sem fins lucrativos. Os mestres vajrayana não são necessariamente figuras públicas. A maioria deles não é nem mesmo reconhecida como professores budistas – no passado, alguns mestres vajrayana ganharam sua vida como prostitutas ou pescadores. Porém, ao contrário do relacionamento professor-aluno que existe em outras tradições, no vajrayana a conexão entre o aluno e o guru é algumas vezes mais pessoal e constante do que a familiar.

Muito frequentemente, para os professores que apresentam o budismo de uma forma mais geral, o oposto disso é o que ocorre. Estes professores são geralmente figuras públicas. Em muitos casos, têm muitos seguidores, e tanto eles próprios quanto seus ensinamentos, estão amplamente disponíveis. 
Eles também podem estar na liderança de vários mosteiros e organizações sem fins lucrativos.

Assim, ‘guru vajrayana’ e ‘professor budista’ são, de fato, papeis totalmente diferentes – mesmo quando ambos os papeis acabam desempenhados pela mesma pessoa. O que quero discutir aqui é o papel do mestre vajrayana em geral, e o papel de Sogyal Rinpoche como diretor espiritual da Rigpa, e professor de budismo no âmbito público.

Esta distinção é importante, porque muitos alunos budistas agora se perguntam como explicar este tipo de escândalo para seus amigos e para pessoas próximas. Como tocar no assunto com a irmã menor, que estuda num colégio cristão? Ou com seu novo namorado não budista, essa pessoa que você realmente quer impressionar, mas que já começou a pensar que sua disposição para fazer tudo que aquele guru lhe pede é realmente esquisita. Então, esta é uma questão que precisa ser contemplada e respondida separadamente, especialmente à luz do aumento em cobertura por parte da imprensa que o comportamento de Sogyal Rinpoche necessariamente vai sucitar.

Nada do que aqui tenho a dizer sobre o vajrayana em particular é fácil de explicar. De fato, estou um pouco preocupado por possivelmente acabar produzindo mais questionamentos do que respostas. E também estou certo de que minhas palavras serão mal interpretadas. De todo modo, a decisão de escrever este artigo já foi feita, uma vez que há muitos praticantes genuínos do vajrayana que podem estar passando dificuldade sobre como encarar a situação atual, e que também podem achar interessante ponderar as questões que me disponho a levantar aqui.

O Relacionamento Guru-Discípulo

A Universidade de Nalanda na Índia foi uma das primeiras universidades do mundo. Foi em Nalanda que, mil e quatrocentos anos atrás, eruditos confirmaram não haver algo como um átomo, ou “partícula indivisível”, ou um deus que exista inerentemente; e estes eruditos ririam muito das teorias de hoje em dia sobre Big Bang e democracia. Meu ponto aqui é que na Universidade de Nalanda não havia espaço nenhum para sentimentalismo, ou devoção ou fé cegas.

Naropa era o Reitor desta magnífica universidade. Suas conquistas enquanto estudioso eram extraordinárias, mas ainda assim o deixavam insatisfeito. Então ele abandonou a posição de prestígio e se dispôs a encontrar um professor cuja sabedoria transcendesse sua própria enorme erudição, e tudo que ele conhecia. Num determinado ponto, ele encontrou Tilopa, um pescador, e este encontro marcou o início de uma jornada cheia de aventura e altamente imprevisível.

Entre muitas outras tarefas inexplicáveis, Tilopa pediu a Naropa que beliscasse as nádegas de uma princesa em público, e que também roubasse sopa, ações que fizeram com que Naropa acabasse violentamente surrado. Ainda assim Naropa – com seu treinamento de cético total – fez, incondicionalmente, tudo que Tilopa pediu, sem interpor nem uma única pergunta. Sua recompensa foi o ensinamento de Mahamudra, que ele passou a seus próprios alunos, que por sua vez o passaram adiante. Ao longo dos séculos, a linhagem dos ensinamentos de Mahamudra de Naropa veio a liberar incontáveis seres humanos.

As pessoas que valorizam o Mahamudra não são burras; não são são bajuladores, ou gente disposta a seguir uma seita. A linhagem de Mahamudra de Naropa se espalhou por todo lado – e não só atraindo hippies desempregados, gente que largou a faculdade, desajustados sociais e rebeldes, mas alguns dos maiores imperadores do mundo. E a história sobre como Tilopa ensinou a Naropa foi contada vez após vez. E não como algum tipo de lenda, mas como ensinamento e exemplo – um exemplo que a maioria dos praticantes iniciantes no vajrayana anseiam por imitar.

A linhagem de Mahamudra de Naropa continua até os dias de hoje graças aos grandes mercadores de Mahamudra do extremo oriente, tais como Chogyam Trungpa Rinpoche, que a transportou até mesmo para o oeste selvagem da América do Norte.

Mais de trinta anos atrás, Trungpa Rinpoche ordenou que seus alunos, incluindo aí advogados e dentistas bem-sucedidos de Boulder, no Colorado, se mudassem para o lugar mais sombrio do planeta, Halifax, na Nova Scotia. E eles foram. Para os dias de hoje, uma ordem desse tipo é o equivalente a pedir a Naropa que roube sopa. E, o que é mais fantástico, décadas depois do falecimento de Trungpa, estes dentistas e advogados obedientes ainda moram em Halifax, e agora já são avós de uma terceira geração de praticantes.

Por falar nisto, caso você se descubra cercado por alguns destes praticantes, eles vão falar das glórias de Trungpa Rinpoche até que seus ouvidos caiam!

Este tipo de história – do tempo de Naropa até Trungpa Rinpoche no séc. XX – exemplifica o relacionamento guru-discípulo que é absolutamente crucial para a transmissão do Mahamudra.

Sogyal Rinpoche cometeu ‘Erros’?

Recentemente alguns alunos de Sogyal Rinpoche, pessoas que também se consideram praticantes da tradição vajrayana, alegaram que Rinpoche considerava seu comportamento abusivo os “meios hábeis” da “compaixão irada” na tradição da “louca sabedoria”.

Não importa como se descreva o estilo de ensinamento de Sogyal Rinpoche, o ponto crucial aqui é que, caso os alunos tenham recebido uma iniciação vajrayana, estando totalmente cientes de que era uma iniciação vajrayana ao recebê-la, e caso Sogyal Rinpoche tenha se assegurado de que todos os pré-requisitos tenham sido aceitos e completados, então, do ponto de vista vajrayana, não há nada de errado com as ações subsequentes de Sogyal Rinpoche. (Aliás, ‘iniciação’ inclui a instrução que aponta diretamente, a mais elevada iniciação vajrayana, também conhecida como quarto abhisheka.)

Francamente, para um aluno de Sogyal Rinpoche que recebeu abhisheka conscientemente, e que, portanto, começou o caminho vajrayana, pensar em rotular as ações de Sogyal Rinpoche como ‘abusivas,’ ou criticar um mestre vajrayana, mesmo em privado, que dizer em público e na imprensa, ou simplesmente revelar que tais métodos existem, é uma quebra de samaya.

Isto não quer dizer, como foi sugerido, que o tantra forneceria aos professores uma lista métodos para o abuso sexual, emocional ou financeiro de seus alunos – não se encontra qualquer lista desse tipo em tantra algum. Por outro lado, um guru vajrayana irá utilizar o que quer que esteja disponível a ele para desafiar e contrariar o ego, o orgulho, o autocentramento e o pensamento dualista de cada um de seus alunos, podendo até mesmo acabar mandando um homem muito cúpido e sexualmente voraz se tornar um monge.

Sinto muito, mas não podemos aqui dar um jeitinho nas regras. Quando tanto a pessoa que concede e a pessoa que recebe a iniciação vajrayana estão totalmente cientes e lúcidas quanto ao que aconteceu, ambos precisam aceitar que a percepção pura é a principal visão e prática do caminho vajrayana. Não há espaço algum para sequer um lampejo de percepção impura.

Mas o que é ‘percepção pura’? Num sentido último, de acordo com o vajrayana, a prática da percepção pura não significa apenas ver o guru como um deus, ou mesmo como uma deidade tântrica. Embora o vajrayana seja famoso por incluir técnicas de visualizar não só o guru, mas cada ser deste planeta e no universo como uma deidade, o ponto principal da percepção pura é ir completamente além da percepção dualista e reconhecer a união de vacuidade a aparência.

Colocando isso de forma simples, a percepção pura é a forma mais elevada de treinamento mental – dag nang byang em tibetano. Dag significa ‘puro;’ nang significa ‘percepção,’ e byang significa ‘treinar’ ou ‘se acostumar com.’

E como funciona a percepção pura? Como um aluno do vajrayana, caso você olhe para Sogyal Rinpoche e pense que ele está acima do peso, isto é uma percepção impura. Para tentar corrigir a percepção impura, então você pode talvez tentar visualizá-lo com o corpo de Tom Cruise, porém isso ainda não é percepção pura. Um dos infinitos meios hábeis utilizados no vajrayana para desconstruir e desmantelar a percepção impura é visualizar Sogyal Rinpoche com uma cabeça de cavalo, mil braços e quatro pernas. Porém, até mesmo esta técnica precisa ser eventualmente transcendida de forma a completamente realizamos a percepção pura.

Basicamente, enquanto a percepção do aluno permanecer impura, o guru que ele vê será uma projeção baseada em sua própria projeção impura, de forma que, portanto, só poderá ser impura também. O único modo de transformar a percepção impura e reconhecer o guru como um ser iluminado é treinando a mente com as práticas de visualização fornecidas no caminho vajrayana.

Nenhum ensinamento vajrayana, ou professor vajrayana qualificado, jamais esperaria que as percepções de um aluno sejam puras desde o primeiro momento em que dá o primeiro passo no caminho vajrayana. É por isso que as técnicas que aplicamos são chamadas de ‘treinamentos’ – e mesmo a palavra em português implica que erros são inevitáveis. Porém há uma forma muito simples de verificar o progresso na prática. No vajrayana esperamos ver não só o guru, mas a nós mesmos como uma deidade. Então, caso alguém tenha recém recebido o ensinamento de que é uma deidade, e perde o almoço, e por causa disso sente fome, isso significa que o treinamento não está completo. Alguém só está perfeitamente treinado em percepção pura quando finalmente realizar a união de aparência e vacuidade.

Assim, caso um aluno de Sogyal Rinpoche o veja debatendo-se em meio a um lago, e baseado em sua percepção impura projete nele a ideia de que parece estar se afogando, talvez não seja uma boa ideia para esse aluno pensar, “Como Rinpoche é um ser iluminado, ele deve ser capaz de caminhar sobre as águas.” Um pensamento muito melhor seria, “É a minha percepção impura! Rinpoche está se manifestando como um homem se afogando para que eu possa acumular o mérito de salvá-lo.”

À medida que a prática se aperfeiçoa, a percepção do guru não segue atada ou limitada pelas causas, condições e efeitos que antes nos fizeram pensar que ele estava se afogando. Este é o ponto do desenvolvimento espiritual em que se realmente vê o guru externo como o Buda, e também se é capaz de ver o próprio guru interior.

Até este momento, quando o guru lidera uma reunião da diretoria, e fica evidente que ele não entende nada sobre a questão, como membro prudente desse comitê que você é, você não deve hesitar em fornecer a ele a informação de que ele precisa. Ao mesmo tempo, como aluno do vajrayana, é preciso que você lembre habilidosamente de que o guru apenas parece estar sem noção, e isso é assim para você devido a sua própria percepção impura. Ao parecer precisar de sua ajuda, na verdade o guru está lhe dando uma oportunidade de acumular mérito.

Todos nós temos hábitos, e é o hábito que torna a percepção impura inevitável. No momento em que entramos no caminho vajrayana, começamos a quebrar os “samayas” – que são nosso compromisso com sustentar a percepção pura. É por isso que a presunção de que todos os praticantes vajrayana irão cometer erros está embutida no caminho vajrayana. O caminho de um praticante é, portanto, imediatamente confessar, expor e consertar quaisquer percepções impuras no momento que surjam, e continuamente aspirar para cometer cada vez menos erros.

E é isso que se quer dizer com “manter os votos de samaya”. De fato, a prática do Vajrayana não pode ser separada da manutenção do samaya. Não faz sentido nenhum algo como: “Vamos manter o samaya e depois praticamos.”

Num sentido último, uma vez que tenhamos transcendido toda possibilidade de cometer erros ou quebrar samaya, até mesmo pensar que haja algo a confessar, ou que exista algo como um confessor, é uma quebra de samaya. No Darma do Buda inteiro, e não apenas no vajrayana, a única forma pela qual qualquer um de nós tornará capaz manter todos os samayas é com a realização de uma compreensão perfeita de shunyata.

Caso uma percepção impura – tal como a crítica ao próprio guru – é feita deliberada e conscientemente, e acaba se tornando uma discussão bem organizada e pública, sem espaço para emendas ou correções, isso constitui quebra total de samaya.

Uma vez que a iniciação tenha sido concedida e recebida, nem o guru nem o aluno podem seguir analisando um ao outro – o guru não pode analisar o aluno, e o aluno não pode analisar o guru. Tendo concedido iniciação a alguém, não importa quão irritante, teimoso, neurótico ou até mesmo criminoso alguém seja, o guru precisa aceitar essa pessoa como seu aluno e cuidar dele como se fosse seu próprio filho – até mais do que se fosse o próprio filho, na verdade. Sei que muitos de vocês não querem ouvir isso, mas esta é a visão do vajrayana, e é isso que é ensinado em todos os tantras.

É um grande erro especular sobre a possibilidade de continuar a analisar e criticar o guru depois de receber uma iniciação profunda – de fato, isto é completamente equivocado. Não podemos alterar a visão fundamental do vajrayana apenas porque não se adapta às mentes de alguns ativistas progressistas, puritanos, abraâmicos, ou individualistas.

Caso você ache que essa visão não lhe é adequada, mas ainda assim você quer seguir o caminho do Buda, sempre é possível tentar os caminhos mahayana e shravakayana. Caso nenhum desses caminhos funcione para você – caso você não se sinta confortável com a ausência de chão não dualista do Budismo – você pode muito bem seguir alguma das religiões abraâmicas.  São religiões que seguem um caminho claramente firmado e dualista, e dizem coisas como “não coma carne de porco, não coma peixe, mulheres precisam vestir burcas”. Caso o rótulo “religião” seja em si embaraçoso demais para suas mentes elitistas e supostamente progressistas, você pode tentar algum tipo de secularismo semi-ateísta, com uma cobertura de ética moralista, e inchado por uma hipocrisia dogmática de classe média. Ou quem sabe você pode se permitir ser engolfado pela angústia existencialista, e então ficar incomodado com aqueles que se deleitam na curtição da esperança.

Ainda assim, pode haver alguns entre vocês que anseiam por ensinamentos tântricos porque querem rapidamente obter todas as realizações espirituais que puderem, e sem passar nenhuma dificuldade; ou porque são o tipo de pessoa que se acha merecedora e cheia de direitos, e assim adora pular as práticas preliminares. Ou talvez sejam muito espertos, queiram seguir o caminho mais simples com os resultados mais rápidos, e, a fim disto estão dispostos a dar um jeitinho no sistema e fazer uns atalhos para chegar o mais rápido possível aos mais elevados ensinamentos Dzogchen ou Mahamudra. Ou quem sabe são um daqueles tipos que chora amargamente quando o guru diz que não é o momento certo de dar tais ensinamentos, e então faz chantagem emocional extrema para conseguir o que quer. Caso você caia em qualquer uma dessas categorias, tudo que lhe resta é um relacionamento guru-discípulo do tipo é-tudo-ou-nada. Sinto muito, mas é assim que as coisas são, e eu não posso fazer nada quanto a isso.

Não podemos mudar a visão do vajrayana ou inventar alguma versão “moderada” do budismo vajrayana apenas para agradar a mentalidade ocidental do séc. XXI. Caso fizéssemos isto, seria o mesmo que dizer que nestes tempos modernos podemos dizer que alguns fenômenos compostos são permanentes, e que alguns fenômenos existem inerentemente – porém, também não podemos fazer isto. Esta visão é fundamental para o Darma do Buda, e, portanto, também para o caminho vajrayana.

No budismo, a ideia geral é que treinamos nossas mentes para realizar a não dualidade. O tantra nos oferece a forma mais profunda de atingir essa não dualidade pela prática da percepção pura; e no vajrayana essencializamos esta prática com a sustentação da percepção pura quanto ao guru.

Num sentido último, como praticantes vajrayana, precisamos aplicar a percepção pura a tudo e todos, e a qualquer coisa sem exceção, o que significa que a precisamos aplica-la também a Donald Trump, e mesmo a Hitler. Porém, só conseguiremos atingir uma percepção pura de tudo e todos caso em primeiro lugar sejamos capazes de manter percepção pura de nosso próprio guru. Caso tentemos reter a opção de questionar, criticar e analisar – em outras palavras, caso retivermos algum tipo de percepção impura seletiva como uma apólice de seguros que nos permita questionar o próprio caminho – então como se atingiria a cessação da mente dualista? Como o “um só sabor” vai ser realizado assim? Como se realiza a união de samsara e nirvana?

Uma das práticas fundamentais do budismo é trabalhar com as próprias projeções. É uma prática que é particularmente enfatizada no vajrayana. Sei que muitos de vocês vão rolar os olhos e me acusar de estar vacilando quando digo isto, mas todas as acusações dos alunos críticos de Sogyal Rinpoche estão baseadas nas projeções deles. Sei que isso é difícil de aceitar, sei que parecem coisas muito reais, mas, mesmo assim, elas são apenas projeção.

A conclusão aqui é: caso tanto o aluno quando o guru estejam cientes da teoria e da prática do vajrayana, não consigo ver nada de errado no que Sogyal Rinpoche fizer a seus supostos alunos de vajrayana – especialmente aqueles que ficaram com ele por vários anos. Estes alunos se colocaram voluntariamente no caminho vajrayana; é uma jornada que eles escolheram fazer. Pelo menos eu presumo que seja assim.

Aspectos dessa jornada se contrapõem a leis comumente aceitas? Possivelmente. Contradizem a forma que os seres humanos modernos do séc. XXI normalmente pensam? Sim. De um ponto de vista mundano, a maior parte do vajrayana parece impensável, talvez até criminosa. Caso Tilopa estivesse vivo hoje, teria sido preso há muito tempo. E agora que falamos nisso, que país ou cultura ocidental se gabaria em plena literatura sobre Marpa surrando Milarepa? Ainda assim, os tibetanos celebram esta história, resguardando-a como um dos mais gloriosos exemplos de um genuíno relacionamento guru-discípulo.

Também presumo que aqueles alunos próximos de Sogyal Rinpoche que lhe foram críticos não foram até ele em primeiro lugar lhe pedir conselhos sobre como alcançar sucesso mundano, ou buscando terapia, mas para descobrir como transcender este mundo ordinário – o que necessariamente envolve ir contra todos os tipos de valores mundanos tais como moralidade, o estado de direito, prestação de contas, transparência, e assim por diante. Não é possível manter um pé firmemente plantado nas zonas de conforto mundanas e então esperar ser capaz de transcendê-las.

É por este motivo que se diz que o vajrayana se destina exclusivamente aos discípulos de “qualidades superiores” – que neste contexto não tem nada a ver com alguém ser inteligente o suficiente para receber uma bolsa de prestígio ou se graduar de uma universidade de primeira linha. A pessoa com “qualidades superioras” é aquela que tem nojo total do dualismo de samsara e nirvana, que é cheia de repulsa pelas ideias de fundamentalismo e moderação, que é revoltada com o anarquismo e a moralidade, e que é determinada e sincera em sua devoção pela transcendência da dualidade. E é por isso que os alunos recebem tantas advertências antes de receberem ensinamentos vajrayana.

Terão os alunos de Sogyal Rinpoche sido advertidos? Foram Estabelecidas as Fundações Necessárias para a Entrada no Vajrayana?

Qualquer um que tenha um pouquinho de bom senso sabe que uma advertência precisa ser dada antes, e não depois, do fato ocorrido. Então é o dever de um mestre vajrayana advertir repetidamente os alunos aspirantes sobre no que eles estão se metendo. Os alunos precisam ser advertidos sobre pelo que irão passar – uma descrição completa, não só os pontos principais.

Caso Sogyal Rinpoche tivesse fornecido esses avisos, caso ele tivesse estabelecido fundações adequadas ensinando as bases do budismo, caso ele tivesse se assegurando de que os alunos haviam estabelecido uma sólida fundação pelo estudo e prática, e caso ele lhes tivesse relatado, antes de receberem iniciação e ensinamentos, sobre a natureza do caminho vajrayana e as consequências com que se deparariam caso quebrassem samaya, é bem possível que uma situação com essa nunca tivesse surgido.

Porém, suspeito que não foi bem isso o que se deu. No que se baseiam minhas suspeitas? Parte se devem a meu conhecimento dos hábitos tibetanos de conceder ensinamentos, e também no pouco que sei sobre os métodos de ensino do próprio Sogyal Rinpoche.

Em primeiro lugar, muitos professores tibetanos ainda têm o hábito de ensinar não tibetanos como se fossem tibetanos. No Tibete, o vajrayana nunca foi ensinado com o segredo com que foi ensinado na Índia. Lá a necessidade de manter segredo absoluto sobre a natureza dos ensinamentos, e mesmo sobre a identidade do professor, foi sempre enfatizada. Mesmo as iniciações eram concedidas em segredo, muitas vezes em locais inabitáveis, como cemitérios e o topo de montanhas. Ou seja, bem o oposto de como os lamas tibetanos – que geralmente sentam em tronos enormes em frente a milhares de pessoas – concedem iniciações.

Na Índia, nossos antecessores tântricos já chegavam extremamente bem informados – Naropa, por exemplo, sabia exatamente no que estava se metendo. Na maior parte da história do budismo tibetano, este não foi o caso.

É irônico que os alunos ocidentais de hoje estejam tão ansiosos em imitar o modo tibetano de fazer as coisas – estes são hábitos que, em sua maioria, não merecem a apreciação que recebem. Dois milênios antes da Renascença Europeia iniciar uma nova cultura de questionamento e investigação no mundo moderno, o Buda já havia apontado e enfatizado a parte vital que a análise toma na descoberta da natureza da realidade. Mais de dois milênios antes da queda do autoritarismo no ocidente, o Buda ensinou, “Você é seu próprio mestre. Ninguém além de você mesmo é seu mestre.” Nenhum destes dois conselhos foi levado a sério no Tibete. Não levar estes ensinamentos a sério é um hábito muito ruim, e certamente não é nada de que se orgulhar.

Os lamas tibetanos muitas vezes usam rituais tântricos como parte de eventos públicos locais, o que significa que as iniciações vajrayana se dão em conjunto com o hastear de bandeiras, e o cortar de fitas. Este uso do tantra era totalmente desconhecido entre os antecessores budistas dos tibetanos na Índia, onde nem mesmo um traço da transmissão sagrada do vajrayana podia ser vista antes, durante ou depois de ser executada numa dada ocasião. Os lamas tibetanos também abertamente se gabam de seus gurus, como se estivessem desvelando uma placa comemorativa. Porém eu me surpreenderia muito caso eu descobrisse que Naropa havia colocado qualquer esforço em melhorar seu CV, ou caso alguma vez tenha anunciado publicamente que seu guru tântrico era Tilopa.

Pode ser possível conceder iniciações e ensinamentos vajrayana aberta e publicamente em locais em que os iniciados têm absoluta devoção, são em sua maioria analfabetos, e não possuem treinamento acadêmico, nem o costume de analisar. Mas é difícil descobrir esse tipo de pessoa num mundo que está cheio, que está quase estourando, de tanta gente esperta. Então, hoje em dia, quando os lamas tibetanos aplicam seu hábito de conceder abertamente ensinamentos vajrayana para não tibetanos – em particular ocidentais – mas se esquecem de que estão presenteando estas disciplinas a pessoas que leem o New York Times, que são bem preparadas em pensamento crítico, treinadas para dar valor à analise e à contemplação, e aplaudidas por se rebelarem contra as convenções, não é inevitável que nada funcione?

Em contraste profundo com as características que marcam os alunos modernos do darma, a maioria dos discípulos tibetanos era culturalmente obrigada a receber iniciações e ensinamentos como parte de sua vida tradicional. Muitos poucos tibetanos se aproximaram do vajrayana com qualquer ideia de aplicar a análise adequada e recomendada, e em vez disso apenas confiaram em devoção cega. Até os dias de hoje muitos entre nós, lamas tibetanos em geral, não só Sogyal Rinpoche, mantemos fortemente nossos hábitos tradicionais, e assim devotamos pouco tempo para conceder aos alunos as advertências apropriadas, bem como para estabelecer as fundações necessárias antes de conceder iniciações e ensinamentos.

Conheço um pouco sobre Sogyal Rinpoche porque visitei vários centros Rigpa, e testemunhei a configuração dos centros Rigpa de primeira mão. Para ser franco, não vi evidência suficiente e convincente de que as advertências apropriadas eram concedidas, ou de que fundações adequadas haviam sido estabelecidas, ou de que os ensinamentos fundamentais haviam sido fornecidos de forma adequada. Em várias ocasiões, me parecia como que se alguns dos alunos fossem cristãos até talvez o dia anterior a ouvir o ensinamento que estavam ouvindo, e então, repentinamente, 24 horas mais tarde, já estavam ouvindo sobre devoção ao guru, recebendo instruções que apontam diretamente, e praticando Guru Ioga – a coisa era extrema assim.

Caso este seja o caso – caso advertências adequadas e treinamento de fundação não tenham sido concedidos antes dos ensinamentos vajrayana – então o Sogyal Rinpoche está ainda mais errado do que os alunos que levantaram as críticas. Por quê? Porque é sua a responsabilidade de preparar o terreno para o vajrayana de acordo com os ensinamentos e práticas de fundação prescritos e bem estabelecidos pelo próprio vajrayana. Não há dúvida alguma de que a pessoa com mais conhecimento, poder, e, portanto, responsabilidade, também tem a maior culpa quando tais obrigações não são preenchidas.

Como Respondem os Alunos Ocidentais

Ainda assim, há coisas com relação a tudo isso que me deixam intrigado. Os alunos criticando Sogyal Rinpoche parecem ser altamente inteligentes. Por que, então, não foram espertos o suficiente para examinar e analisar o professor antes de se alistarem? Como se deixaram arrastar pela experiência na Rigpa, com aqueles panfletos lustrosos tão bem elaborados, e toda a agitação do centro? Não compreendo porque esperaram dez, ou até mesmo trinta anos, antes de dizer qualquer coisa. Como é que não viram todos estes problemas no primeiro ou no segundo ano de seu relacionamento com Sogyal Rinpoche?

Devo também dizer que embora intrigado, minha confusão se mistura com simpatia, porque nós como seres humanos não só somos servos de nossos intelectos, mas também somos levados por nossos sentimentos. Só posso especular, mas não será possível que estes alunos tenham ficado comovidos, e talvez até mesmo deslumbrados, com tudo que encontraram na Rigpa? Talvez os panfletos luxuosos, o incenso, os tronos, e as recitações cantadas tenham feito seu trabalho? E, é claro, a Rigpa recebeu muitos lamas altamente respeitados e ilustres, inclusive o mais elevado de todos, o que deve ter cimentado a veneração e o respeito que estes alunos sentiam não só pela tradição toda, mas também pelo próprio Sogyal Rinpoche. Como resultado dessa erupção inesperada de sentimentos piedosos que vivenciaram, talvez não tenha sobrado muito espaço em suas mentes para fazer uma análise mais criteriosa, uma vez que emocionalmente só queriam “se jogar!” Pelo que vi na Rigpa, pode muito bem ter sido isso que aconteceu.

Puxa vida, mas também o carma parece ter um papel nisso tudo, não é mesmo? E agora que eu falei em carma, estou certo de que alguns de vocês me acusarão de cair em outro vacilo. Ainda assim, o fato é que cair em propaganda em papel de boa qualidade e parafernália tibetana, se sentir inspirado e tocado pelo exotismo tibetano e por toda essa espécie tibetana que está em vias de extinção, e tudo mais que surge em nossas mentes, apenas surge de causas e condições que são a essência do carma.

É assim que funciona, e tudo que posso fazer é encorajar cada um de nós a acumular mais carma bom, de forma que não nos deparemos outra vez com esse tipo de situação em nossas vidas. Sentimentos são cármicos. E temo que essa situação não vai se apaziguar enquanto seu carma não se exaurir.

Caso um Professor e um Aluno Vajrayana Briguem, Quais são as Consequências?

Caso o professor e o aluno tenha atingido uma compreensão genuína sobre o caminho sendo praticado, e todas as fundações necessárias e apropriadas tenham sido estabelecidas, e uma ideia clara das consequências possíveis tenha sido passada, mas o aluno ainda mantém uma visão errônea e age segundo ela, difamando e criticando o professor, então, de acordo com o tantra, o aluno encontrará consequências graves e inimagináveis.

Mas o mesmo se aplica ao professor. De fato, caso o professor não tenha estabelecido as fundações apropriadas, caso o professor tome vantagem de um aluno física, emocional ou financeiramente, e caso o professor conceda ensinamentos da mais elevada ioga para aqueles que ainda não estabeleceram uma fundação adequada, e como resultado, um aluno imaturo quebre os samayas raízes mais fundamentais, então o professor também sofrerá consequências extremamente graves – consequências ainda mais sérias e terríveis do que as do aluno.

Caso as fundações adequadas tenham sido estabelecidas, mas as ações do guru – físicas, verbais, emocionais, etc. – não deixarem  o aluno um centímetro mais próximo da iluminação, e caso as ações do professor tenham objetivo ganho pessoal, sexo, dinheiro, poder ou autogratificação, é claro que ele não sabe o que está fazendo. Ele, portanto, obviamente não é um grande mestre vajrayana, muito menos um mahasiddha. E assim ele passará por consequências extremamente graves.

Quando digo ‘consequências graves,’ não estou falando de acabar exposto nas mídias sociais, ou ter a reputação arruinada por um escândalo, ou mesmo ser condenado e preso. Isso não é nada! As consequências para o professor são muito piores do que a mera humilhação mundana: ele vai para o inferno vajra. O que é o inferno vajra? Não é apenas ser fervido em ferro derretido, ou fritado em imersão por guardiões do inferno, – coisas que, em comparação, soam até bem confortáveis. A característica insuportavelmente terrível do inverno vajra é que, uma vez que você esteja lá, você não ouve nem uma única palavra dos ensinamentos sobre causas e condições, originação dependente, shunyata, e o resto todo, por zilhões de éons. Mil budas podem surgir e desaparecer, mas no inferno vajra, você não vai ouvir nada a respeito deles ou de seus ensinamentos.

Caso as ações de um professor arruínem a imagem do Darma do Buda, estraguem o apetite pelo darma de um aluno aspirante, ou caso a semente de inspiração que leva uma única pessoa a seguir o Darma do Buda seja queimada de forma irreversível, as consequências serão tão terríveis que são, de fato, inexprimíveis.

Poucas pessoas parecem saber como é difícil ser um aluno do vajrayana, mas quase ninguém sabe como é muito mais difícil ainda ser um mestre do vajrayana. Acredito que a tão amplamente difundida e execrável ignorância quanto a estas consequências é o que leva tantas pessoas hoje a passarem por grandes esforços para conseguir uma vaga como guru – e isso vale mesmo para os secularistas não budistas. Porém, se lhes fosse dada a oportunidade, estes supostos gurus dispensariam o abuso exatamente da mesma forma que as pessoas comuns o evitam. Caso as pessoas soubessem quão precário e perigoso é o trabalho de um guru, duvido que alguém ainda o quisesse.

O próprio prestígio e as vantagens que um guru parece desfrutar representam exatamente o quanto, em comparação com as oportunidades do aluno, são maiores as chances dele enganar ou ser enganado. Como Patrul Rinpoche afirmou em As Palavras de Meu Professor Perfeito, quando um aluno oferece um único centavo, ou faz qualquer tipo de esforço, por pequeno que seja, para mostrar respeito ao professor – ficando de pé quando o professor entra na sala, ou se curvando a ele, ou abrindo passagem para que o professor vá na frente – há consequências; e caso o suposto mestre vajrayana não seja iluminado, ele não está acima dos débitos cármicos que tais oferendas produzem.

Claro, idealmente, um mestre do vajrayana deve ser iluminado. A realidade é que muitos mestres do vajrayana talvez não sejam, ainda que, por razões que nada tenham a ver com ganho pessoal, fama e fortuna, eles assumam esse papel. Alguns deles o assumem por necessidade. Ou porque os ensinamentos precisam ser preservados, ou a linhagem corre o risco de ser rompida, e eles então aceitam o papel de mestre vajrayana por amor pelos próprios ensinamentos. Basicamente, caso eles estejam na posição de não ter outra escolha senão passar adiante estes ensinamentos preciosos, então, bastante relutantemente, eles se tornam mestres do vajrayana.

Portanto, um mestre não iluminado não deveria sustentar qualquer ilusão. Ele precisa saber em seu interior que não é iluminado, e ele nunca deve enganar a si próprio dizendo que é. Como aluno, porém, é preciso que você veja seu mestre vajrayana como um ser iluminado. Esta é uma escolha que você precisa fazer. Mas isso não está em contradição com o Buda quando ele diz, “Você é seu próprio mestre. Ninguém fora você mesmo é seu mestre”? Não, não entra em contradição, porque é você que está fazendo esta escolha.

Um mestre vajrayana definitivamente não é um mahasiddha caso seja afetado pelo escândalo, ou tema ser publicamente envergonhado, e tenha pavor da ideia de ser jogado numa prisão. Ele também não é um mahasiddha caso se preocupe com perder alunos. Um mahasiddha de verdade, como Marpa ou Tilopa, não estaria nem aí com relação a qualquer uma destas coisas, e nem pensaria duas vezes sobre ser jogado na cadeia. E um mahasiddha certamente nunca sentiria necessidade de pedir desculpas por suas ações, uma vez que tudo que ele faz é feito por compaixão.

Por outro lado, caso seu mestre vajrayana não seja um mahasiddha e não só surre os alunos, mas também pessoas aleatórias na rua, aprecie mais a merda do que a comida gourmet, rasgue notas de 100 dólares, carregue uma mala cheia de bolas de futebol ou areia por aí, fique igualmente excitado com uma pedra, ou por homem ou mulher atraentes, fale besteira, e não guie ninguém num caminho que tem visão, meditação e ação, ou base, caminho e fruição, então ele é só um louco, e deveria ser hospitalizado.

Mas e se um mestre vajrayana não é nem um mahasiddha, nem é louco, como ele deveria se portar? Ele deve se comportar de forma “decente”.

Seja ele iluminado ou não, um mestre do vajrayana terá estudado muitos ensinamentos e técnicas preciosos e profundos. Agora que ele é um professor, ele pode compartilhar o que aprendeu com alunos sinceros e devotados. Ele sabe que ao utilizar esses ensinamentos e os métodos que seus próprios mestres utilizaram ao ensiná-lo, é totalmente possível que os discípulos se iluminem antes dele. Então ele tem uma razão muito boa para ser decente, e para não tirar vantagem daqueles que entregaram suas vidas a ele. Não importa o que os alunos tenham sacrificado e oferecido – tempo, dinheiro, oferendas, respeito, o que for – ele precisa utilizar estas coisas para ajudá-los. Caso ele acenda uma única vela e a coloque em frente a uma estátua do Buda com aspirações genuínas para a iluminação de seus alunos, isso será suficiente.  

Ser decente também significa que o mestre vajrayana precisa conhecer os limites de seus alunos – o que eles aguentam e o que eles não aguentam. Para fazer isso, ele precisa apenas usar o bom senso e se perguntar quais seriam seus próprios limites. O que, por exemplo, ele não teria feito nem caso seu próprio mestre vajrayana lhe tivesse pedido? Caso o mestre vajrayana de Sogyal Rinpoche o tivesse pedido para que fosse celibatário, ele o faria?

Obedecer sempre às ordens do guru é difícil. Felizmente, nenhum de meus mestres vajrayana jamais me pediu para fazer nada que considerei impossível tentar realizar – tenho bem certeza que eles sabiam que eu não tinha capacidade de fazer absolutamente nada do que me pediam.

No mínimo, um mestre vajrayana que não seja iluminado precisa sempre considerar as consequências de suas ações. Em particular, ele devia perguntar a si mesmo se suas ações afastam as pessoas do Darma do Buda em geral e do vajrayana em particular. E um mestre vajrayana não iluminado, mas decente, precisa sempre se lembrar de distinguir bem entre o destemor da “louca sabedoria” e a estupidez de “ninguém vai descobrir!’

Perdido na Tradução: Confundir Sinais Culturais Sutis

De meu próprio ponto de vista muito limitado, e depois da experiência de ter amigos ocidentais por várias décadas, eu diria que apenas um único lama realmente entendeu a cultura ocidental e agiu de forma adequada com relação a ela, Chogyam Trungpa Rinpoche.

A maioria dos lamas tibetanos, como já disse antes, ensinam a não tibetanos da exata mesma forma que ensinam tibetanos. Neste processo, tentam fazer o impossível, transformar alunos ocidentais em tibetanos. Acredite se quiser, conheci pessoas que realmente acreditam que, para elas, a única forma de estudar e praticar o Darma é aprendendo tibetano, cantando no estilo tibetano, recitando orações em tibetano, e até mesmo vestindo roupas tibetanas tradicionais.

Também percebi que lamas tibetanos passam muito tempo ensinando aos alunos tradições tibetanas que nada tem a ver com o Darma. Eu não me surpreenderia se, ao fazer isto, alguns lamas não tenham feito com que seus alunos ocidentais acreditem que só possível atingir a iluminação sendo tibetano.

Para o Darma do Buda em geral e o vajrayana em particular serem mesmo passado e ensinado a não tibetanos, é muito importante que haja uma compreensão cultural adequada entre o professor e o aluno, assim permitindo que o darma genuíno se transmita de forma apropriada e com precisão. Isto é realmente difícil, mas é absolutamente necessário.

A cultura, no fim das contas, é um hábito, e os hábitos são a manifestação fundamental da ignorância. Então é totalmente injusto culpar o sistema vajrayana quando lamas e alunos não seguem procedimentos vajrayana, preferindo confiar em suas presunções e hábitos culturais – que é o que a maioria dos lamas gosta de fazer.

O próprio sistema do vajrayana estabelece todos os procedimentos muito claramente. Quase todas as iniciações profundas – mesmo a primeira das quatro iniciações usuais – são precedidas por pelo menos seis advertências. Estas advertências incluem instruções sobre o lama mostrar o vajra, dar água de compromisso, e outras. Porém, quantos de nós lamas realmente enfatizam essas advertências?

Quando lamas tibetanos dão iniciações a tibetanos e butaneses, a maioria deles não tem ideia alguma do que está acontecendo, e muitos poucos sequer se importam em vir a entender. Cada vez mais, os lamas tibetanos assumem que os alunos ocidentais têm a mesma atitude. Estes lamas algumas vezes dão iniciações a milhares de alunos de uma só vez, e muitas vezes os alunos nem sabem o que receberam, muito menos o que o ritual significou, porque as advertências do vajrayana foram simplesmente lidas em voz alta e não foram explicadas.

Para ser justo, alguma responsabilidade também precisa ser depositada nos alunos ocidentais, que algumas vezes estão mais interessados em parecer com tibetanos e falar com eles do que com realmente praticar o darma. Caso eles sejam tibetanologistas, ativistas que anseiam salvar a cultura tibetana, então até tudo bem – e presumo que haja algum benefício nisso.

Porém aqui estamos falando sobre o Darma do Buda, e o Darma do Buda está muito além de “país” e “cultura”. Então, se você está interessado em atingir essa tal iluminação, se você quer “despertar” e liberar-se de todas as máculas e dos efeitos das máculas, então obviamente você precisa ir além da cultura completamente – ir além até mesmo das culturas de comedor de curry, mastigador de tsampa e tomador de cafezinho.

Distinções claras entre o Darma e a cultura também precisam ser feitas, caso queiramos algum dia solucionar estas confusões de agora – que, como já disse, provavelmente seguirão por mais algum tempo. Olhando para a próxima geração de lamas e como eles estão se manifestando, devo dizer que não vejo sequer um lampejo de consciência quanto a esta questão vindo de qualquer um deles.

Disseram-me que Chogyam Trungpa Rinpoche fez seus alunos fazerem prática sentada – shamata – por vários anos. Ele também os fez estudar os ensinamentos do shravakayana e do mahayana em detalhe, os fazendo passar por anos de preparação antes de receber quaisquer iniciações vajrayana ou instruções que apontam diretamente. Trungpa Rinpoche chegou ao ponto de criar o fenômeno Shambhala – o treinamento Shambhala e a prática de meditação sentada – para garantir que seus alunos estivessem realmente preparados para o Darma do Buda.

Todos os procedimentos de preparação prescritos são importantes. Lembre do fato de que Naropa já era um celebrado estudioso, e o Reitor da Universidade de Nalanda antes de sequer tentar encontrar um guru – em outras palavras, ele estava completamente preparado.

Advertências Diretas que São Mal Entendidas

Outro fator que adiciona complexidade à situação atual é que por mais que os alunos estejam familiarizados com o conselho de que devem analisar e testar o guru antes de se tornar um aluno – e mesmo quando lhes são dadas advertências diretas – parte da experiência humana é que há coisas que simplesmente não se quer ouvir, especialmente quando estamos com a flecha da inspiração fincada no peito. Isto significa que na prática, nas raras ocasiões em que advertências apropriadas são concedidas, muitas pessoas simplesmente não ouvem. Algumas nem querem ouvir as palavras de advertência. Para muitos de nós, seres humanos, a capacidade de ouvir, e a capacidade efetivamente captar o que se está ouvindo, não são coisas muito fáceis de estabelecer.

Infelizmente, advertir pessoas do perigo potencial ou sobre problemas pode até mesmo causar ainda mais problemas. Recentemente eu fui bastante franco com uma jovem que era nova no Darma, e sugeri que ela ficasse longe de certo lama jovem em particular, devido a algumas coisas que sabia sobre ele. Meu conselho foi desinteressado e de coração. Eu não só estava preocupado com ela, mas também com o jovem Rinpoche, e com Darma do Buda. Porém, ela não aceitou bem meu conselho – na verdade, o entendeu completamente errado. Para ela, eu a estava sendo controlador, possessivo e ciumento. Claro, muitos jovens têm naturezas rebeldes, e muitas vezes fazem o oposto do que lhes é sugerido. Porém, neste caso ela repetiu tudo que eu havia lhe dito em privado para o jovem lama, e o resultado disso é que agora há se formou uma pequena ruptura entre minha pessoa e este lama. Isto é uma circunstância muito infeliz.

Algo bastante parecido ocorreu quando uma aluna veio até mim reclamar sobre como seu guru sempre pedia que lhe comprasse coisas – relógios caros Rolex, carros, antiguidades, etc. Quando veio até mim, ela já lhe havia comprado muitas coisas, mas agora não estava mais podendo manter essa situação, já que tinha também obrigações financeiras para com a própria família. Respondi que, falando de forma geral, se ela, como aluna, realmente quisesse fazer oferendas caras para o professor, ela podia fazer quantas fosse capaz de fazer, pelo tempo que fosse. Porém, também disse que se ela estivesse sentindo qualquer constrangimento sobre o que estava fazendo, ela devia explicar sua preocupação diretamente para seu guru, em vez de falar comigo. Então ela falou com o professor. Infelizmente, ela também lhe disse que havia sido eu que havia dito para ela falar com ele diretamente, e desde então até hoje eu e este lama não estamos mais nos falando. Dar conselhos pode ser perigoso.

O que teria acontecido caso, muitos anos atrás, eu tivesse advertido os estudantes da Rigpa que escreveram esta carta crítica a Sogyal Rinpoche, e lhes tivesse dito para examinar e analisar o professor cuidadosamente antes de se tornarem seus alunos? Teriam me ouvido? Duvido. O pior que poderia acontecer é uma advertência aberta desse tipo resultar em graves desentendimentos e conflitos bastante sérios – que eu como ser humano certamente sempre anseio evitar. Também me lembro de algumas reações muito defensivas por parte de alguns alunos da Rigpa quando fiz uma piada sobre a parafernália tibetana excessiva que vi em seus centros.

Mas e se eu tivesse assumido o papel de advogado do diabo? E se eu não só tivesse aconselhado estes alunos a verificar e analisar o guru, mas fosse além disso e dissesse: “Sogyal Rinpoche apresentou vocês para muitos professores do vajrayana realmente fantásticos. Porque vocês escolheram continuar seguindo ele, em vez desses outros grandes mestres?”

E se eu tivesse levantado a questão: “Fora o que o próprio Sogyal Rinpoche lhes disse, que prova têm de que ele recebeu um treinamento completo e adequado? Ele era apenas uma criança quando recebeu ensinamentos de Jamyang Khyentse Chökyi Lodrö – sabiam disso? Sabiam que ele tinha apenas dez ou doze anos de idade quando Khyentse Chökyi Lodrö faleceu? Sabiam que ele foi para uma escola católica em Kalimpong e depois para a Universidade em Delhi? Então, quando é que ele fez seu treinamento?”

E se eu tivesse perguntado: “Vocês veem tibetanos se amontoando para receber ensinamentos de Sogyal Rinpoche? Os tibetanos são sempre muito respeitosos na frente uns dos outros, mas vocês sabem o que eles realmente estão pensando? Talvez, apesar do fato deles saberem que ele não foi bem treinado, eles sigam respeitosos com Sogyal Rinpoche porque estão seguindo os costumes tibetanos.”

E se eu tivesse levantado estes questionamentos? Algum dos alunos que agora está sendo tão crítico teria me ouvido? Não estou falando apenas sobre Sogyal Rinpoche aqui. E se eu levantasse questionamentos do mesmo tipo sobre todos os lamas, rinpoches e khenpos de hoje em dia?

O carma muitas vezes ignora a análise e pula as advertências. E, é claro, as conexões cármicas e os débitos cármicos estão sempre acontecendo, incluindo nisso a contínua má interpretação de sinais culturais sutis – por exemplo, toda vez que os tibetanos pensam uns sobre os outros, os tibetanos seguem sempre publicamente respeitosos uns com os outros, o que muitos ocidentais interpretam como confirmação de terem grande consideração mútua.

Os tibetanos e os butaneses – e eu mesmo sou um híbrido tibetano-butanês – estão totalmente marinados em incontáveis hábitos culturais. Eu preciso admitir que é bem frequente que estes hábitos interfiram e criem obstáculos quando se trata de falar franca e honestamente sobre questões importantes deste tipo. Pessoas como eu sempre achamos que devemos nos portar de forma humilde, e muitas vezes confundimos ser humildes com não ser diretos. Ainda assim, o hábito da humildade tem sem lugar, e pode, por exemplo, prevenir discussões desnecessárias. Pessoalmente, eu ainda preferiria este enfoque, em parte por hábito, e em parte para não entrar em complicação – e como seres humanos, a maioria de nós deseja evitar a complicação, caso seja possível.

Claro, os lamas muitas vezes não dizem certas coisas abertamente porque suas palavras já foram muitas vezes mal citadas, mal noticiadas, e cortadas e editadas para significar outra coisa totalmente diferente – a fala dos lamas é muito frequentemente deturpada de todas as formas. Então, conseguir dizer o que eles realmente pensam pode ser problemático.

Basicamente, como já disse, advertir pessoas sobre como escolher seu guru é uma das coisas mais difíceis que um lama pode fazer. Porém, caso evitemos advertir abertamente os alunos, como seremos capazes de evitar consequências?

Tempos Diferentes, Desafios Diferentes

Recebi abhishekas de cerca de trinta lamas, mas não posso afirmar ter analisado adequadamente todos eles. Para ser totalmente honesto, sou um desses tibetanos que apenas se joga nas iniciações sem realmente dispor o devido tempo, ou algum tempo, para examinar o preceptor. Ainda assim, antes de receber uma iniciação ou ensinamento de um lama, eu geralmente lembro de usar meu bom senso.

Um método que se pode usar para escolher de que lamas receber iniciações é muito similar ao que se usa para, por exemplo, descobrir onde se come bom macarrão na Itália. Assumimos que os locais onde os italianos comem são bons, uma vez que os italianos entendem de macarrão. Já evitei receber ensinamentos de certos lamas me baseando neste princípio de bom senso.

Orgyen Tobgyal Rinpoche certa vez me disse que quando Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche visitou a França pela primeira vez, quase ninguém foi a seus ensinamentos, mas tão logo era anunciado que Sogyal Rinpoche ensinaria, todos queriam ir ouvi-lo. Claro, entendo porque as pessoas se amontoavam para ouvir Sogyal Rinpoche: ele fala inglês e é engraçado, e assim os alunos se identificam com ele – se sentem conectados. Como seres humanos, tendemos a optar pelo que é acessível sempre que possível, e então este também pode ser um fator.

Tenho que dizer que nenhum dos gurus de quem recebi iniciações e ensinamentos jamais me abusou financeiramente, sexualmente, fisicamente ou emocionalmente. Porém também tenho que admitir que assumi que eles jamais fariam uma coisa dessas – o que é equivocado de minha parte. Uma vez que decidimos tomar um professor como guru, não devemos manter nenhuma presunção com relação a se ele vai nos tratar bem ou mal, porque o ponto é ter coragem de se render completamente antes de embarcar na jornada completamente desconhecida e imprevisível do vajrayana. E, como aluno do vajrayana, gostaria de aspirar que em vidas futuras eu seja realmente capaz de manter percepção pura quanto a meu guru, e ter a capacidade de fazer o que quer que ele me peça, sem questionamentos.

Porém, o método de bom senso para escolher um guru de que falei, usando o exemplo do macarrão, tem suas limitações. Tenho certeza que muitas pessoas acabam com um determinado guru porque ele ou ela por acaso é aluno de um grande mestre, ou porque ele ou ela apareceu em situação pública ao lado de muitos outros grandes gurus, que pareciam lhe demonstrar afeto e respeito. Minha própria experiência mostra que essa abordagem nem sempre funciona.

Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche venerava e respeitava tanto Jamyang Khyentse Chökyi Lodrö, Shechen Gyaltsab e Khandro Tsering Chödrön que qualquer um que estivesse ligado a eles se tornava igualmente precioso para ele – mesmo seus cachorros. Eu não conseguia ver muita grandiosidade em várias das pessoas por quem Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche demonstrava um afeto enorme desse tipo. Quando mencionei como me sentia para meu tutor pessoal, ele respondeu que Kyabje Dilgo Khyentse Rinpoche tinha percepção pura de tudo e todos, especialmente daqueles conectados com seu guru. E então ele me repreendeu, “Isto é algo que você precisa aprender”. Agora reconheço quanto este conselho me foi inestimável.

Em resumo, para aqueles entre nós que estamos começando uma jornada espiritual, julgar o guru pelo CV dele, e pelos mestres ilustres que ele conheceu, nem sempre é um método confiável. De fato, neste caminho a própria existência de um CV desse tipo é suspeita. Naropa não foi atrás de Tilopa porque ele tinha um grande CV. Pelo contrário, Naropa teve que descobrir quem era Tilopa. Ninguém conhecia Tilopa, porque ele era apenas um pescador comum, e assim o descobrir foi extremamente difícil.

Pesos e Contrapesos

Instituir pesos e contrapesos ou prestação de contas no mundo espiritual não é fácil. Como o próprio Buda disse, uns milênios antes ser reconhecido na constituição estadunidense, nenhum sistema é perfeito. O budismo é, ainda assim, um sistema, mas um sistema que não acredita em sistema; e seus pesos e contrapesos definitivos são as causas e condições cármicas. O budismo também reconhece que apenas um ser iluminado pode dizer se outra pessoa é perfeita ou não.

Alguns de vocês atualmente estão tentando fazer tudo que o que podem para garantir que lamas que se portam mal não deixem de ser punidos. Sua motivação pode mesmo ser boa: pode ser que vocês queiram poupar mais pessoas inocentes do sofrimento causado por esse tipo de comportamento ruim, e talvez vocês não queiram ver mais ninguém ser afastado do darma por causa dele.

Meus sentimentos pessoais são de que, nos dias de hoje, há muitos poucos seres humanos moralmente decentes, compassivos, bondosos, zelosos e não corrompidos neste mundo – o tipo de pessoa por quem sentimos admiração imediata ao conhecer. E, na medida em que a mentalidade de “cada um por si” cresce a cada dia, os poucos seres humanos decentes que sobraram neste planeta estão desaparecendo rapidamente. Quem sabe o expor dos defeitos das pessoas publicamente desta forma, nas mídias sociais e por todo lado, ajude a fazer com que os outros sintam medo de agir errado? Talvez seja esse o melhor que possamos fazer hoje, nesta era degenerada. Pelo menos alguns lamas, especialmente a geração mais jovem, está recebendo uma mensagem muito poderosa de que não vai se safar com esse tipo de comportamento. Então num momento em que o poder e o prestígio são tão intoxicantes que alguns lamas se consideram intocáveis e esquecem que podem mesmo ser responsabilizados, talvez algo assim seja necessário? Mas realmente não creio que envergonhar publicamente, ou punir legalmente, seja a resposta, ou que vá de fato resolver o problema todo.

Muitas pessoas parecem estar tão desiludidas com essa situação atual que acreditam que chegamos a um ponto de transição, que significa o início do declínio final e o desaparecimento do Darma do Buda. Tristemente, alguns alunos podem mesmo estar tão desiludidos que para eles não há volta.

Temo que não há dúvida alguma: o budismo está em declínio neste mundo. Estou certo de que as desconfianças que as pessoas têm sobre as principais figuras no Darma do Buda – tais como os Rinpoches tibetanos, que devem ter um interesse ostensivo pela sobrevivência do budismo – são uma das razões pelas quais tantos se sentem desencorajados.

Enquanto que o budismo sempre encarou obstáculos externos – tais como invasões, conversão forçada ao Islã, conversão dissimulada pelo cristianismo, assimilação condescendente pelo hinduísmo, e assim por diante – seu principal obstáculo é interno, e surge de atitudes sectárias. Neste momento a maioria de nós nem está nem bem ciente disso, ainda que seja uma das maiores ameaças que o budismo está enfrentando.

Há muitos fatores contribuindo para a degeneração do Darma do Buda. Sob a égide da objetividade racional, contra a superstição, e mascarados por um progressivismo supostamente não dogmático, hoje em dia muitas pessoas na elite americana e europeia promovem uma versão do budismo totalmente destituída de reencarnação. Esta campanha tem o potencial de destruir o budismo de forma muito mais certeira do que qualquer um de seus escândalos internos. Afinal de contas, o escândalo atual é apenas sobre uma pessoa, enquanto que a tendência perniciosa e aparentemente contagiosa de deturpar o Darma – que está sendo perpetuada por muitos, e afeta a tantos outros – está se espalhando tão rápido que se torna muito mais traiçoeira e destrutiva.

Além disso, há um enorme grupo de “professores de estilo de vida” “respeitáveis” que sem remorso algum plagiam e selecionam como lhes convém ideias budistas. Eles vendem suas abordagens como “mindfulness” e “ética secular”, mas cuidadosamente evitam quaisquer termos, expressões ou jargão que soe remotamente religioso, sob o pretexto de tornar as ideias do Buda acessíveis para as pessoas modernas. A eles falta a decência de sequer reconhecer o autor original das ideias e práticas que comercializam, e muitas vezes, pelo contrário, eles até tentam insinuar, ou mesmo descaradamente afirmam, as terem descoberto sozinhos. Para mim isto é roubo, pura e simplesmente. Achava que ocidentais, que valorizam tanto noções de propriedade intelectual, e que têm países que fazem cumprir legislações de direitos autorais tão estritas para a proteção de escritores e instituições, se comportariam melhor.

Ainda mais perigosos do que estes são os gurus autoproclamados que usam a mindfulness e outras práticas budistas para transformar a essência do caminho budista em técnicas para aumentar o amor pelo samsara. Ao fazer isto, eles destroem completamente a finalidade inteira do Darma do Buda, que é liberar os seres dos samsara. Se esta perversão dos ensinamentos não é demoníaca – “o diabo encarnado”, como dizem os cristãos – o que mais pode ser?

No outro extremo, o budismo também está sendo enfraquecido pela tendência predominante no Sikkim, Nepal e Butão para preservar a dita “cultura preciosa” e a “tradição milenar” a qualquer custo. No esforço em embalsamar as próprias tradições, eles acabam efetivamente se apropriando do budismo e dele retirando qualquer sentido e relevância para a era moderna.

A má conduta de Sogyal Rinpoche pode ser sua ruína, e, infelizmente, pode ser a ruína de alguns de seus alunos. Mas estas outras tendências muito mais destrutivas para o Darma do Buda tem o poder de afetar milhões, e efetivamente destruirão o budismo de uma forma muito mais completa do que este escândalo pontual. Francamente, são até mesmo mais letais do que o extermínio ao Darma do Buda produzido pela Revolução Cultural e por outras forças externas.

E agora?

A situação atual é difícil e infeliz, não há dúvida com relação a isto. Mas ao mesmo tempo, não é nada novo. Ao longo da história budista muitos escândalos deste tipo eclodiram – alguns deles foram muito piores. Acho que esta situação atual está nos fornecendo uma oportunidade de mostrar o quanto somos resistentes. Também é nossa chance de olhar para o budismo de uma forma mais panorâmica, sem se fixar apenas numa parte pequena dele.

Para os seguidores do Buda, particularmente os alunos vajrayana, e especialmente os alunos de Sogyal Rinpoche, e para aqueles que estão fazendo perguntas muito difíceis, minha crença firme é que a discussão atual sobre como se portam os gurus está enraizada num desejo sincero de resolver as coisas e de ajudar a sanga Rigpa e o mundo budista em geral. Este é o aspecto positivo desse tipo de questionamento que vemos hoje, e é um aspecto que realmente precisa ser reconhecido e apreciado.

Gostemos disto ou não, como membros da sanga budista mais ampla, e especificamente como irmãos e irmãs vajra, criamos entre nós um laço que é muito mais importante do que a família. Porém, em nossos relacionamentos próximos como seres humanos muitas vezes sofremos devido a problemas de comunicação. Qual é o antidoto para problemas de comunicação? Comunicação! Então agora é a hora de limpar um o espaço para que a comunicação verdadeira e honesta possa ocorrer. De fato, já vi várias cartas e posts online feitos por pessoas que estão fazendo um grande esforço em encontrar uma boa solução.

Acima de tudo, porém, precisamos ter um olhar panorâmico – isto é o mais importante. Precisamos não degredar a sanga Rigpa, ou qualquer um de seus membros individuais. Também é vital lembrar e reconhecer quanta bondade Sogyal Rinpoche trouxe para a Europa e para a América. O fato de que ele apresentou tantas pessoas a professores tão verdadeiramente magníficos por si só é uma contribuição inestimável ao Darma, uma vez que estes mestres extraordinários não eram apenas professores autênticos do darma, mas também alguns dos mais espetaculares seres vivos do século.

No final das contas, eu diria que Sogyal Rinpoche contribuiu com muito mais beneficio para este mundo e para o Darma do Buda do que causou dano. Precisamos lembrar-nos disto. É muito fácil ver essa situação de forma simplista, e então assumir um lado e formar uma gangue contra aqueles que têm visões opostas – especialmente quando a devoção está envolvida nisso.

Com relação a mim mesmo, o que tem acontecido recentemente entre os membros da sangha Rigpa realmente aumentou muito minha apreciação por muitos dos alunos da Rigpa – aqueles que alguns podem rotular de bajuladores cegos. Eu mesmo conheço muitos que são diligentes, gentis, dispostos a aprender, e que realmente se importam com a continuidade do Darma do Buda e da linhagem – o que é raro neste mundo. Nos dias de hoje, o fato de alguém sequer tentar praticar percepção pura e manter devoção por seu professor e pelos ensinamentos é realmente admirável. É tão encorajador ver tantos praticantes ocidentais de primeira ou segunda geração se dedicando à prática budista deste modo. Enquanto que é tentador permanecer inteiramente focados inteiramente no escândalo e na desgraça, o que deveríamos realmente tentar fazer é ver tudo com uma lente muito maior e mais positiva. Até onde pude perceber, a maioria dos alunos da Rigpa reconhece que há algo de incrivelmente bom nos ensinamentos que receberam, e em sua linhagem. E de todos os alunos vajrayana ocidentais que conheci, os da Rigpa estão entre os melhores e mais humildes.

Os tibetanos também precisam reconhecer que estes ocidentais, ao contrário deles mesmos, nasceram e cresceram em países que não tinham nenhuma forma de influência do Darma. Ainda assim, muitos destes alunos ocidentais se esforçaram muito para encontrar os ensinamentos budistas. Sem quaisquer raízes históricas budistas, e absolutamente sem nenhuma cultura budista em seus países de nascimento, eles ainda assim tentaram fazer tudo que os tibetanos, seus professores, lhes pediram. Eles sempre tentaram fazer o melhor. Muitos até mesmo fizeram coisas como transformar suas salas de estar em pequenos espaços de reunião onde as pessoas podem praticar. E a maioria deles não é rica – muitos mal conseguem pagar as contas.

Nesta era extrema, fanática, em que tantos estão perdidos e desesperadamente procuram dar algum sentido a suas vidas, a busca destes ocidentais pelo Darma é significativa e merece os mais generosos louvores. Este é o caso especialmente num momento em que tantas pessoas no mundo voluntariamente escolhem seguir as visões e caminhos mais extremos, visões e caminhos que glorificam machucar a si próprios e aos outros. Ainda assim, nossa sociedade intelectual, supostamente progressista e liberal tenta tanto justificar este tipo de perspectiva e ação extremistas. Alguns até rotulam esta posição como “moderada”, atribuindo a culpa da violência a algumas exceções, sem reconhecer que é a visão e o caminho que estão equivocados.

Eu chegaria a dizer que parece haver uma tendência entre progressistas e intelectuais – todos os que se orgulham em ser objetivos e amam criticar – em descobrir defeitos em coisas que são obviamente boas, e encontrar algo bom em coisas que são obviamente muito ruins. Como resultado disso, colocam tremendos tempo e energia em zombar de um caminho baseado em amor e compaixão, que virtualmente não tem histórico de violência, e que ensina a mais profunda sabedoria da originação dependente. E colocam ainda mais tempo e energia em justificar um caminho que glorifica violência e dualismo.

O agitação atual causada pelas críticas tão públicas a Sogyal Rinpoche é perturbadora para muitos praticantes budistas genuínos, especialmente agora que a mídia ocidental está se apropriando dela com tanto entusiasmo. Suspeito que muitos progressistas, ateístas, e boa parte da mídia ocidental ficaria deleitada caso notícias de um homem-bomba jainista chegassem nesse momento às manchetes: isso provaria seu ponto de que todas as religiões têm um lado negro, e fomentam extremistas. Como não se sentir desencorajado quando o maior jornal diário alemão, o Süddeutsche Zeitung, com um público diário de mais de um milhão de leitores, publica um artigo de capa sobre o escândalo de Sogyal Rinpoche sob uma sessão encabeçada “Budismo”, e intitulada “Abuso”. Imagine o clamor caso a imprensa ocidental publicasse cada notícia sobre bomba ou massacre muçulmanos com o título “Islã!”

Assim, nesta era hipócrita, os seguidores do Buda precisam ser mais corajosos e valentes do que nunca. Num momento em que não há quase apoio ou encorajamento para aqueles que seguem um caminho genuíno, e quando a dúvida é semeada a cada curva na estrada, é mais importante do que nunca que nós – como praticantes individuais e sanghas – não nos deixemos engolir pelo escândalo e por conflitos faccionários. Numa era em que visões errôneas e ações homicidas não só predominam, mas são celebradas e até mesmo justificadas por intelectuais progressistas respeitados, precisamos redobrar nossos esforços para estudar a visão autêntica do Darma do Buda. Ao nos focarmos no panorama mais amplo, e no futuro de longo prazo do budismo, esta crise atual pode muito bem ser uma oportunidade perfeita para que renovemos, pelo bem de todos os seres que sofrem, o nosso compromisso e dedicação ao estudo e prática do caminho autêntico para a iluminação ensinado pelo Buda.

* Em 14 de julho, uma carta detalhada assinada por oito membros seniores desligados da Rigpa, uma rede internacional de centros budistas fundada por Sogyal Rinpoche, circulou entre membros da organização, e logo veio a público. Endereçada diretamente a Sogyal Rinpoche, a carta descreve vários abusos alegadamente cometidos pelo fundador da Rigpa, juntamente com pedidos para uma grande mudança dentro da comunidade.

* Em respeito a seu desejo de que suas visões sejam adequadamente entendidas em contexto, sem edições, a declaração de Dzongsar Khyentse Rinpoche está reproduzida acima de forma integral. Esta tradução, feita por Padma Dorje, foi patrocinada pela Lúcida Letra, Gustavo Gitti e Marcos Bauch, sem aprovação expressa de Rinpoche ou de sua organização no Brasil, como um esforço de mídia independente.

* FONTE: Blog da Editora Lúcida Letra 

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