Refúgio, antídoto do orgulho
Tulku Pema Wangyal Rinpoche
"O maior milagre que pode acontecer a um ser ao longo de infinitas vidas, é leva-lo a tomar Refúgio nas Três Jóias".
O Refúgio, antídoto do orgulho
Na maior parte do tempo, o orgulho, que nasce e cresce sob a
influência da ignorância, leva-nos a sustentar com tenacidade posições sem
fundamento real. O orgulho não é de fato a tendência de pensar e de tentar
provar que as nossas idéias, mesmo falsas, são as melhores? Se elas o fossem
verdadeiramente, isso não seria tão grave. Mas com frequência esse não é o
caso, e nós sofremos terrivelmente por não termos sempre razão. Certas formas
de orgulho, muito sutis, são difíceis de reconhecer. De uma maneira geral, o
orgulho impede-nos de estarmos satisfeitos com aquilo que temos. Esta
insatisfação traz consigo sentimentos de insegurança e de angústia crescentes
e, para acabar, deixam-nos totalmente desorientados. Assim, a primeira das
práticas preliminares é o refúgio, uma técnica de meditação que transforma a
nossa propensão de sermos terrivelmente egocêntricos. Para transformar o
orgulho em sabedoria libertando-o na natureza absoluta, a prática do refúgio
associa visualização, oração, mantras e exercícios físicos.
Em tibetano, refúgio é kyap dro (kyap: refúgio,
proteção; dro: ir, tornar-se). Como regra geral, os seres que não se
sentem em segurança, vão à procura de proteção. A prática do refúgio dá
confiança àquele que a ela se consagra fazendo-o redescobrir a proteção da sua
natureza profunda. A aquisição de uma verdadeira confiança interior varre todos
os véus que geram o medo e a insegurança.
Uma tal confiança não pode eclodir se não for sob a proteção
de um mestre cuidadosamente escolhido: um cego não pode guiar outro cego. Temos
necessidade de nos apoiarmos em seres completamente despertos, e isso, até à
descoberta do verdadeiro refúgio interior, a natureza de Buda latente em cada
um de nós. “Todos os seres possuem o embrião do despertar, e é isso que lhes
permite atingir o estado de Buda dizem os ensinamentos”. Ninguém poderá jamais
perder este potencial que lhe é natural; só os nossos véus mentais nos impedem
de o reconhecer. Todos os treinos têm por fim dissipá-los.
Pode parecer inconcebível que um minúsculo grão guarde uma
árvore magnífica, e todavia... Da mesma maneira, todos os seres dispõem do
potencial do despertar total. Assim, para acedermos ao refúgio último, o estado
de Buda, é necessário que primeiramente nos entreguemos a seres perfeitamente
despertos. A prática do Dharma permite a seguir ter uma realização íntima do
refúgio. Os ensinamentos tornam-se assim no caminho que leva a bom porto - o
despertar perfeito.
Do ponto de vista exterior, é o Buda que é o refúgio
inultrapassável. Do ponto de vista interior, o termo buda designa o estado
desperto do nosso próprio espírito. O ensinamento, ou Dharma, constitui a via
necessária ao desabrochar das qualidades do espírito. Para seguir este caminho,
é necessário apoiarmo-nos na Sangha, a comunidade daqueles que conhecem o
Dharma.
Podemos dizer assim: ‘’O refúgio absoluto é o estado de
Buda, o Dharma é a via, e a Sangha aqueles que nos acompanham na via’’.
O Buda
Em sânscrito, boud significa totalmente desperto
do sono da ignorância, dha quer dizer eclosão perfeita da
potencialidade fundamental e designa o pleno desabrochar do conhecimento, da
sabedoria, da compaixão - em resumo, de todas as qualidades que é possível
desenvolver.
Dentro desse contexto, quando falamos de buda, trata-se não
somente do Buda histórico chamado Gautama (ou Shâkyamuni), mas também de todos
aqueles que atingiram o despertar. Isso situa-se acima do plano universal,
bastante além das limitações específicas do Oriente e do Ocidente. Os Budas
desvendaram perfeitamente os dois aspectos da omnisciência: eles conhecem todos
os fenômenos logo que eles aparecem, e a natureza de todas as coisas tal como
ela é. Os seres despertos atualizaram as cinco sabedorias: para eles, os cinco
venenos transformaram-se em cinco sabedorias. Tendo libertado tudo o que há a
libertar (boud) e realizado tudo o que havia para ser realizado (dha), eles são
Budas, despertos.
Na impossibilidade de encontrar tais seres, é possível tomar
refúgio no ensinamento que eles deixaram, apoiando-nos naqueles que seguem esta
via e o assimilaram.
O Dharma
A palavra dharma tem etimologicamente dez sentidos. Aqui
significa aquilo que guia, que leva a um bom caminho indicando aquilo que
devemos adotar e rejeitar. O Dharma, também chamado de caminho, inclui todos os
ensinamentos que nos chegaram desde Buda até hoje por uma transmissão
ininterrupta de mestres.
Existem diferentes níveis de ensinamentos. O ensinamento
principal descreve em detalhe como os seres estão mergulhados na ilusão, e a
forma pela qual se poderem libertar. A característica dos ensinamentos de Buda
é que, pondo-os em prática, traz uma claridade de espírito que mostra a
totalidade do caminho e dissipa os obscurecimentos.
Encontramos por todo o mundo uma abundância de ensinamentos
religiosos e filosóficos. Alguns têm por efeito aumentar a cólera e as emoções.
O Dharma de que falamos aqui possui, ao contrário, o poder de libertar os seres
de emoções perturbadoras. Essa é a sua primeira virtude, consequência de ele
estar fundamentado na não-violência. O aspecto irado de algumas representações
de Budas na iconografia tibetana é puramente simbólica. A espada que o Buda
Manjushri brande, por exemplo, representa a sabedoria que corta os
obscurecimentos e subjuga as manifestações demoníacas interiores.
A Sangha
Em tibetano, qualificamos a Sangha em duas palavras, rig
dreul, expressão que une a sabedoria rig e a liberdade dreul; mais
precisamente, a tomada de consciência do nosso potencial e a libertação daquilo
que nos afasta dela.
Aquele que consagra a sua vida ao caminho da liberdade faz
parte da Sangha. Não podemos considerar como membro da Sangha uma pessoa
que não tem a menor noção do que é a via, nem o menor desejo de dedicar a sua
vida a outrem; como, então, apoiarmo-nos numa pessoa tal para atingir a
libertação?
A Sangha designa todos aqueles que detêm e vivem os seus
ensinamentos e as suas práticas. Esse termo tem vários níveis de
significado, mas traduzimos literalmente por aqueles que inspiram o desejo de
seguir o caminho da virtude, os amigos espirituais, o grupo de praticantes, ou
de maneira mais geral, todas as pessoas que consagram a sua vida ao socorro e à
paz de todos os seres.
O voto do refúgio
Quando fazemos a escolha consciente de tomar refúgio, é
melhor escolher o refúgio último. É a melhor maneira de progredir no caminho
espiritual.
Entre as Três Jóias; Buda, Dharma e Sangha; alguns dão
primazia ao mestre ou ao guia espiritual, uma vez que ele representa os seres
despertos sendo a fonte dos ensinamentos. Outros dão mais importância aos
ensinamentos, pois eles permitem atingir o despertar. Para outros ainda, o
contacto com os companheiros espirituais tem um papel maior. Não existe uma
regra absoluta, somos todos diferentes e podemos escolher de acordo com as
nossas necessidades e inclinações.
Saibam sobretudo, no momento de tomar refúgio, que a vossa
motivação pode ser mais ou menos vasta: podem considerar o triplo refúgio como
um barqueiro, indispensável somente para vos fazer chegar à outra margem, ou
decidir tomar enquanto vós e todos os seres não estiverem livres do sofrimento
e do perigo. Assim cada um toma refúgio pelo tempo que corresponde à medida da
sua motivação. De fato, alguns tomam refúgio para se protegerem durante esta
vida apenas, e preferem não pensar naquilo que a seguir se passará; outros, com
uma abertura de espírito inconcebível, a compaixão imensa, comprometem-se até
que todos os seres, sem exceção, tenham atingido o despertar. Definitivamente,
cada um é livre de orientar a sua ou as suas vidas de acordo com os seus
desejos e capacidades.
A seguir, aquele ou aquela que decidir apoiar-se nas Três
Jóias deve saber o que é preciso evitar ou adotar:
Tomando refúgio no Buda, renunciamos a tomar refúgio em
seres ou pessoas que não estão ainda perfeitamente despertas, ou de objetos
exteriores (árvores, montanhas, sol, etc.).
Tomando refúgio no Dharma, comprometemo-nos a fundamentar
pensamentos, palavras e atos na não-violência e a não fazer mal aos outros, bem
como a todas as formas de vida em geral.
Tomando refúgio no Sangha, escolhemos evitar associarmo-nos
àqueles que perturbam os outros ou que os prejudicam, pelo menos até termos
adquirido a capacidade de libertá-los da sua confusão, e comprometemo-nos a
cultivar o altruísmo incansavelmente.
A prática do refúgio
Apesar desta prática ser um antídoto eficaz para todas as
emoções perturbadoras, a prática do refúgio tem efeitos principalmente sobre o
orgulho.
Esta prática recorre a duas abordagens, uma relativa, outra
absoluta. No plano relativo, fazemos apelo às técnicas que tomam a luz como
suporte da concentração. Visualizando diante de vós uma forma luminosa e vazia
de seres despertos, concentrem-se na sua presença e recitem os diferentes
mantras e orações ligadas ao refúgio. Podem por exemplo reportar-vos ao texto
do refúgio dos Preliminares do Novo Tesouro de Dudjom Rinpoche:
De hoje em diante, e enquanto eu não tiver atingido o
coração do despertar,
Tomo refúgio no Lama, no Buda, no Dharma e na Sangha.
A forma elaborada desta prática é acompanhada de prostações.
Mantenham a mesma visualização e ofereçam uma prostação para cada recitação da
oração.
No plano absoluto, o refúgio consiste em deixar a mente
repousar no estado livre de todos os conceitos de sujeito, objeto e ação,
experimentando ficar na simplicidade natural da mente. (Aqui o sujeito é
aquele que toma refúgio, o objeto aqueles em quem tomamos refúgio, e
a ação o fato de tomar refúgio. Este tema será aprofundado em
capítulos seguintes).
Vejamos mais precisamente este treino. O princípio é de
implicar simultaneamente o corpo, a fala e a mente no processo da purificação.
Sentem-se confortavelmente mantendo a coluna vertebral bem direita. Podem
juntar as mãos à frente do vosso coração ou pousá-las sobre os joelhos, de
acordo com aquilo que melhor vos convier. Na moldura de uma meditação extremamente
simplificada, é suficiente concentrar o espírito sobre uma esfera de luz. Com
um pouco de treino poderão visualizar no espaço à vossa frente um ser desperto
e considerá-lo como a essência de todos os Budas do passado, do presente e do
futuro. Se as inquietações ou os pensamentos começarem a desfraldar,
apliquem-se simplesmente a afinar os detalhes da visualização. Mantendo quer a
visualização, quer o estado de simplicidade, cantem as estrofes do refúgio,
recitem mantras e, em casos limites, multipliquem as prostações.
Consoante o nível da prática, uma prostação pode ser
considerada como uma homenagem, ou como um meio de se ligar à energia interior.
O exercício físico é o seguinte: pomo-nos de pé, os pés unidos, as mãos em botão
de lótus diante do coração. Elevando as mãos juntas para levá-las
sucessivamente à frente da testa, à garganta e ao coração, abrimo-las
seguidamente inclinando-nos para pousá-las no chão ao lado dos nossos joelhos,
antes de escorregar para a frente, de maneira a alongarmo-nos completamente. A
testa vai tocar o chão entre os braços estendidos, as mãos juntam-se na parte
mais elevada do crânio. Levantando-se rapidamente no movimento inverso, tomamos
a posição inicial.
Este treino de movimentos reveste-se de um simbolismo muito
completo. Os pés unidos representam o equilíbrio das energias solar e lunar que
se apoiam sobre a terra, recordando também que o relativo e o absoluto se unem
sem conflito. As mãos unidas ao nível do coração - a base das palmas das mãos
unidas, as extremidades dos outros dedos tocando-se ligeiramente, os polegares
no interior da cavidade - formam um botão de lótus representando a sabedoria
(ou a vacuidade) inseparável da compaixão. Aliás, este gesto, ou mudra, leva
todas as energias positivas ao coração. Levar as mãos sucessivamente à testa, à
garganta e ao coração, exprime a sublimação das energias desviadas do corpo, da
palavra e do espírito. Tocar o chão com as mãos, os joelhos e a testa, portanto
em cinco pontos, simboliza a libertação dos bloqueios físicos.
É uma prática muito eficaz, uma yoga completa posto em
prática especialmente por praticantes que dedicam a maior parte do seu dia à
meditação imóvel. Estaríamos muito errados se a puséssemos de parte alegando
que ela é muito simples.
A formulação da oração do refúgio é especial para cada
conjunto de práticas preliminares. A sua expressão mais breve é:
Namo Boudhâya
Namo Dharmâya
Namo Sanghâya
Isto significa: Homenagem ao Buda, homenagem ao Dharma,
homenagem ao Sangha. Quem rende homenagem, e a quem? Visualizem no espaço à
vossa frente o objeto do refúgio: um Buda ou uma assembléia de seres despertos,
emitindo raios de compaixão e de luz. Em toda a vossa volta, vejam a infinidade
de seres do universo a tomarem refúgio convosco: à direita e à esquerda os
vossos pai e mãe atuais, que vos deram esse precioso corpo humano, em seguida
os vosso familiares e amigos e todos os seres sem exceção.
A prática dos ensinamentos fundamenta-se na não-violência,
pelo que devem pôr à vossa frente os vossos inimigos. Serão eles realmente
inimigos? Examinem em quê eles vos parecem hostis: o mais frequênte é por causa
de uma ligação negativa estabelecida pelo passado que um ser será julgado
ameaçador. Na realidade, nada nem ninguém pode ser qualificado como inimigo.
Mesmo uma pessoa maldosa não procura fazer mal se não estiver sob a influência
do seu próprio sofrimento; ela merece por isso um lugar de eleição nas vossas
orações.
Durante a recitação do refúgio, ou durante as prostações,
pensem que os raios de luz provenientes dos Budas transmutam todo o sofrimento:
esta luz enche e purifica todos os seres, dissipando os bloqueios e os véus
ligados ao corpo, à fala e a mente. Ela regenera as vossas forças e
protege-vos, evitando que executem atos negativos. Inundando o corpo, a fala e
a mente de todos os seres, as suas vagas purificam igualmente a atmosfera e o
ambiente.
Pratiquem assim o refúgio durante um certo tempo,
mergulhados na oração e na luz. No fim da sessão, considerem que vós mesmos e
todos os seres saem purificados. Dissolvendo-se em luz, estes últimos
dissolvem-se uns nos outros e fundem-se em vós. Agora, vocês tornam-se luz,
para se dissolverem finalmente na forma do ser desperto que, por sua vez,
desaparece em luz.
A mente fica no momento presente, aqui e agora, sem seguir
os pensamentos do passado, do presente ou do futuro: é a purificação absoluta.
É aquilo a que chamamos repousar no estado natural da mente, um estado de
frescura e de simplicidade, além de todos os conceitos.
Treinar encontrar esta simplicidade fundamental permite
restaurar a confiança na nossa verdadeira natureza. A pulsão do orgulho, essa
necessidade de provar a nossa superioridade que não é mais do que um sintoma de
falta de confiança em nós, desaparece, completamente liberta dentro do estado
da sabedoria equânime.
Conclua cada sessão de prática dedicando os méritos ao
despertar de todos os seres.
Tomar refúgio é uma forma de dar de si, uma oferenda. Com o
voto do refúgio, comprometemo-nos a consagrar o treino espiritual ao bem de
todos; esta resolução suporta a nossa prática e atrai, por intermédio do mestre
espiritual, o apoio de todos os seres despertos. Pronunciar formalmente o voto
do refúgio e receber um nome espiritual estabelece com efeito uma ligação
profunda com a linhagem de transmissão de Buda. Um praticante sente com
frequência a necessidade de se comprometer de uma forma tradicional, não porque
seria impossível de progredir sem isso, mas simplesmente porque a sua prática
recebe muitos benefícios.
Para concluir este capítulo, citarei três estrofes de um
ensinamento de um dos meus principais mestres, Dilgo Khyentse Rinpoche:
Para desenvolver a verdadeira confiança
Que varre tendências e véus kármicos
Fazendo-nos reconhecer o nosso despertar inato,
Tomemos apoio no refúgio relativo.
O refúgio absoluto, nosso despertar inato, é o fruto:
A natureza de Buda, presente mas ignorada,
O estado natural de cada ser, de cada coisa.
Ao reconhecer o nosso despertar inato, tomamos refúgio
absoluto.
O refúgio absoluto é a verdadeira natureza da mente
Cujo conhecimento imediato tem três aspectos:
A vacuidade, que constitui a sua essência, a luminosidade a
sua expressão.
E a sua bondade profunda como uma imensidade onde nada faz
obstáculo.
Tulku
Pema Wangyal Rinpoche
em “O Cortador de Diamantes”
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