A convivência nasce do diálogo que celebra nossas diferenças
"A convivência nasce do diálogo que celebra nossas diferenças".
S.S. o Dalai Lama
São Paulo, 17 de setembro de 2011.
"Eu me dirijo a vocês como um ser humano. E vejo que vocês também são seres humanos. Então, entre nós não existe nenhuma diferença, nem mentalmente, nem emocionalmente, nem fisicamente. E, mais importante, todos nós devemos ter uma vida plena, e todos nós temos o direito de alcançar a felicidade que almejamos.
Certamente, em um nível secundário, existem diferenças entre nós. Eu, por exemplo, nasci na Ásia, nasci no Tibet, eu sou budista. Mas no nível fundamental não existe diferença entre nós, somos todos iguais. E é nesse nível fundamental que nossa comunicação deve acontecer.
Na realidade de hoje, é chegado o tempo em que é possível desenvolver um conceito de Nós. Toda a comunidade integra um ente único, que somos Nós. No passado havia um sentimento de Nós aqui de um lado e do Outro apartado de Nós. Mas no mundo moderno, por causa da economia global, por causa das questões ecológicas, do crescimento populacional, o interesse de um país é totalmente ligado ao interesse dos demais países. O interesse de um continente está ligado aos interesses dos demais continentes. Então hoje nós temos relações de um país para com todos os demais, de um continente com todos os demais. Essa é a realidade de hoje. E a sociedade não pode se desenvolver sem recursos que vem de outros continentes. Essa interdependência, ou seja, essa unicidade da humanidade deve ser compreendida para um futuro saudável.
No passado, nós dávamos muita ênfase a esse conceito de Nós de um lado e Eles do outro. Em consequência disso, muitos problemas desnecessários acabam aparecendo. As diferenças de nacionalidade, crença religiosa, classe social, nível educacional são secundárias e acabam criando discriminação e infelicidade. Apesar dessas diferenças, somos todos iguais à medida que somos seres humanos e vivemos no mesmo planeta.
No século XX, certamente assistimos o desenvolvimento de um inter-relacionamento entre nós, porém o século XX também veio a ser conhecido como um século de violência e derramamento de sangue. Alguns historiadores afirmam que mais de 200 milhões de pessoas morreram por causa da guerra e da violência, em guerras civis, inclusive com o uso de armas nucleares. E você poderia pensar que se apesar dessa tremenda violência o mundo passou a ser mais pacífico, então poderíamos pensar em alguma justificativa para esse tipo de conduta. Mas esse não é o caso.
Precisamos construir o século XXI como o século da paz. E para que isso aconteça é importante utilizar o conceito do diálogo.
É importante enxergarmos que o uso da violência não constitui um método realista de solução de problemas. No passado, os interesses de cada país eram autônomos, então cada país tinha interesses separados dos de outros países. Se eu travo uma guerra com outro país, a derrota do inimigo significa a minha vitória. Mas na realidade de hoje, com essa grande interdependência entre nações e povos, não é mais realista pensar em termos de destruição do vizinho, já que destruí-lo representa também sua própria destruição.
Se olharmos para a guerra do Iraque e Afeganistão, poderemos ver que a ação dos americanos teve origem correta, mas o método utilizado foi equivocado. E quando você usa a violência, muitos resultados equivocados e indesejados aparecem. É muito melhor utilizar o diálogo. Dentro dessa vertente, precisamos fazer do mundo moderno um mundo desmilitarizado, onde não haja armamentos. Então essa afirmação deve fazer parte do nosso sonho de ter um dia um mundo completamente livre de armas. E isso é uma coisa que pode ser alcançada passo a passo. Agora nós vemos que vários países tem agido no sentido de reduzir seu arsenal de armas, o que já é um bom começo. Mas enquanto estivermos diante desse esforço, temos uma tarefa a cumprir. Enquanto se avança no desarmamento externo, é preciso que se crie um desarmamento interno. A raiva, o ódio, o medo, a inveja, a ganância, essas são as causas primeiras da violência. É importante que prestemos mais atenção ao nosso nível interno de emoções. É a partir da nossa capacidade de lidar com essas emoções internas negativas que um dia o desarmamento externo poderá acontecer.
Eu vejo que existem muitas pessoas jovens na platéia e com vocês eu gostaria de dividir alguns pensamentos meus. Eu tenho hoje 76 anos de idade e pertenço à geração do século passado. Mas vocês que tem menos de 30, pertencem à geração do século XXI. A minha geração está se preparando para a despedida, está chegando nossa hora de ir embora. Mas vocês que são a geração do século atual precisam ter responsabilidade. Cabe a vocês visualizar como um mundo pacífico e compassivo pode ser criado. É importante que vocês tenham uma visão e disposição para trabalhar esse mundo pacífico. Para que isso possa acontecer, duas coisas são necessárias: primeiro é a visão, como já falei, e para isso não basta olhar apenas para o que está à sua volta. É preciso ter uma perspectiva ampla que abarque o mundo todo, uma perspectiva global. A segunda coisa é a educação. A educação é um instrumento que pode ser utilizado de forma positiva ou negativa. E isso depende inteiramente da motivação de cada pessoa. Por isso é muito importante que vocês prestem atenção para a qualidade do seu coração, que vocês cultivem o calor no coração. Primeiro para seu benefício próprio. Um coração cálido no peito certamente te dará uma vida com mais sentido. Essa qualidade garante um sentimento de autoconfiança e reduz o medo, permitindo que haja paz interior.
Agora eu quero falar como essas qualidades do coração podem ser cultivadas e desenvolvidas. Eu costumo dizer que existem três caminhos para isso. O primeiro é o caminho proposto pelas religiões teístas, que propõem o conceito de um Deus criador. Essas religiões oferecem um instrumento extremamente poderoso para lidarmos com o nosso egoísmo, com a nossa arrogância e contribuem definitivamente para uma visão menos egoísta. Deus pode ser entendido como uma compaixão infinita, como Amor, e então uma pessoa que se submete totalmente ao seu Deus e O segue de maneira sincera possui um instrumento muito poderoso para cultivar as qualidades do coração.
O segundo caminho é proposto pelas religiões não teístas, como o Jainismo, o Budismo e o segmento antigo do Hinduísmo. Elas não propõem a existência de um criador. Essas três grandes tradições religiosas vão falar da lei da causalidade. Ela diz que se você pratica bons atos e propicia a felicidade de seu semelhante, isso redunda em seu benefício. Por outro lado, se a sua atitude é de ferir os outros, causar sofrimento e restrição ao outro, então isso leva a conseqüências negativas para você próprio. Então, compreendendo isso, você deve ter como hábito isentar-se de prejudicar o seu semelhante. E, se possível, mais do que isso, você também deve servir o seu semelhante. Então, inicia-se um ciclo de paz que fortalece valores internos.
No planeta nós somos 7 milhões de seres humanos, e uma grande parcela da humanidade não tem um interesse sério em uma crença religiosa. Por curiosidade pessoal, das pessoas que estão aqui, quantas pessoas não tem engajamento sério com uma crença religiosa? (Muitas pessoas levantam a mão e o Dalai Lama ri). Então, é realidade.
Nós vemos muitas pessoas nos diversos países que não se interessam por um caminho religioso. O que não podemos negar é que os não crentes também fazem parte da comunidade. E para eles a alegria e a paz interior também são importantes. Para eles também é necessário cultivar valores internos. O problema é que as pessoas que não se interessam por religião não se dão o trabalho de aprender a desenvolver e cultivar valores como a compaixão, o amor, o perdão. Elas pensam que essas são coisas que pertencem ao mundo da religião. Mas essa perspectiva é equivocada.
Os valores internos formam a base de uma vida feliz.
Então, se uma pessoa busca a felicidade, ela não pode negligenciar esses valores internos. É claro que as religiões vão promover e cultivar esses valores, mas é necessário também que pessoas que não tem interesse explícito por religião possam desenvolvê-los. Dentro desse contexto, acredito que é preciso existir também uma terceira via em que os valores internos possam ser também cultivados sem necessariamente passar por uma religião, seja ela teísta ou não teísta.
Eu gostaria de falar para vocês um pouco sobre a história da Índia. Se voltarmos 3000 anos no tempo, encontraremos uma Índia que ainda não existia como país unificado, mas como uma infinidade de pequenos reinos, cada um com sua concepção religiosa. Essa diversidade de religiões sempre existiu na Índia. Além das religiões autóctones, muitas convicções religiosas do mundo migraram para a Índia e lá se estabeleceram de forma pacífica, de forma que hoje nós temos todas as tradições religiosas. E na história da Índia havia uma tradição religiosa que era absolutamente agnóstica, e ela simplesmente dizia que a única coisa com que deveríamos nos preocupar era essa vida e as coisas que aconteciam nessa vida. Não seria preciso se preocupar com coisas como Deus e religiosidade. Essa escola niilista era muitas vezes criticada pelos filósofos e até condenada, mas apenas do ponto de vista filosófico. Mas a pessoa que era seguidora do ponto de vista niilista era respeitada. É preciso que isso seja replicado nos tempos modernos. Devido ao pluralismo religioso, foi desenvolvido na Índia o secularismo e, nessa perspectiva secular as tradições religiosas não são desrespeitadas. Ao contrário, são respeitadas todas as pessoas, pertencentes a todos os credos, e também os não crentes. Desse modo, podemos falar que existe também uma maneira de promover valores internos a partir da perspectiva do secularismo.
O desenvolvimento de uma ética secular é extremamente necessário à humanidade. Nós vemos aqui em São Paulo um número cada vez maior de prédios e prédios cada vez mais altos. Mas ao mesmo tempo, na perspectiva de valores internos, pode ser visto um declínio, o que mostra um contraste. É aí que vemos corrupção, injustiças sociais e esses acontecimentos demonstram uma falta de valores morais, uma falta de fortalecimento de tradições éticas. E também existem no nível de relações internacionais, os países mais poderosos que tem uma cultura autoritária sobre os mais frágeis.
Uma pergunta que faço a vocês: aqui no Brasil, qual é o tamanho da distância entre ricos e pobres? Vocês estão felizes com esse hiato? Outra questão muito importante é a corrupção. Ela entrou pelo mundo todo, oriente e ocidente. Como é aqui no Brasil, ela existe? É pequena ou grande? Se olharmos para a situação da Índia, veremos que é hoje um pais extremamente democrático. A democracia se instalou firmemente na Índia. O poder judiciário é completamente independente e há total liberdade de imprensa. Diferentemente do que ocorre na China. Na Índia o governo é eleito pelo povo. Os governantes são responsáveis perante a população. Comparado com regimes totalitários a democracia é muito melhor, mas ainda assim existe a corrupção.
Então, é necessário, por meio da educação, criar um sentido de responsabilidade e preocupação com o outro, um sentido de que formamos uma comunidade e temos responsabilidade perante essa comunidade. E isso faz aparecer um sentimento de igualdade entre os seres.
É importante registrar que para desenvolver esse tipo de valor é necessária uma visão de longo prazo, e é necessário reproduzi-la no sistema educacional, começando desde a infância e chegando até a universidade.
Os valores internos fazem parte de uma vida feliz e são fundamentais para que uma pessoa seja feliz, para que uma família seja feliz, para que um país seja feliz e para que um planeta seja feliz."
(Trasncrição de Juliana Ortega)
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